Adaptação
livre de Claudio Seto
(Texto e desenhos: Claudio Seto)
Dizem
os japoneses que nem sempre a cobra cega foi cega. Antigamente
ela tinha olhos e enxergava muito bem. Mas tudo começou
há muitos e muitos anos, antes mesmo dos sinos das montanhas
passarem a ser tocados, todos os dias, ao amanhecer e ao entardecer
no Japão. Havia naquele tempo, um jovem lenhador de nome
Kihei. Ele era muito solitário, pois desde que seus pais
morreram vivia sozinho numa pobre choupana no meio da floresta.
Semanalmente ia até a aldeia mais próxima entregar
as lenhas pedidas pelos moradores e aproveitava para comprar alguns
mantimentos para sua sobrevivência.
Certa
tarde de inverno, após um dia de duro trabalho, quando
voltava para casa carregando um fardo de lenha nas costas, numa
paisagem coberta de neve, ouviu um gemido entre os arbusto e parou
para ver o que era. Empurrando as folhas para os lados, o lenhador
deparou com uma linda donzela desmaiada. Kihei levou um grande
susto ao ver seus longos cabelos enroscados nos galhos e tratou
de ajudá-la, tirando-a apressadamente do local, pois ela
já estava quase congelando naquela posição.
Tomou-a em seus braços e carregou-a correndo entre as grandes
árvores até chegar em sua casa.
O lenhador
deitou a moça cuidadosamente no tablado, acendeu o fogo
para esquentá-la, ferveu a água e limpou a testa
dela que ainda conservava uns flocos de neve. Kihei preparou também
um chá de ervas medicinais e serviu à ela fazendo
de tudo para reanimá-la. Aos poucos a donzela foi recuperando
os sentidos, mas continuou pálida e enfraquecida. Mesmo
assim ela olhou para ele e esboçou um sorriso de agradecimento.
O jovem ficou muito feliz em ver que ela estava melhor. Cobriu-a
com uma colcha e disse com voz sussurrante:
- Descanse
bastante, vai se sentir bem melhor amanhã.
No dia seguinte, Kihei, levantou mais cedo que de costume, pois
estava preocupado com a saúde da moça desconhecida.
Ficou surpreendido ao constatar que ela já estava de pé
fazendo faxina por toda casa.
- Puxa,
nem parece a minha casa! Tudo está limpo, sem bagunças
nem poeiras!
A moça olhou para ele, ajoelhou-se e agradeceu abaixando
a cabeça:
-Graças a você estou viva. Se você não
passasse por lá naquele momento, com certeza a esta hora,
eu estaria sem vida e congelada. Muito obrigada mesmo.
-Ora, não exagere, o que fiz qualquer pessoa faria.
Pouco
depois ela preparou o almoço e os dois comeram sentados
em torno de uma mesinha baixa. Kihei estava muito feliz. Pela
primeira vez desde que sua mãe falecera há quase
7 anos, comia uma refeição preparada por outra pessoa.
A presença da jovem deixava o lenhador ao mesmo tempo feliz
e envergonhado. Nenhuma garota jamais tinha entrado naquela solitária
cabana no meio da floresta. Os olhos dos jovens se cruzavam à
todo momento e um sorriso feliz brotava nos lábios dos
dois.
Kihei estava curioso para saber tudo a respeito dela e fez várias
perguntas ao mesmo tempo.
- Qual é o seu nome? Onde você mora? Para onde estava
indo?
O sorriso
se apagou dos lábios da donzela que baixando os olhos ficou
quieta. O lenhador percebeu por algum motivo que ela não
podia responder suas perguntas. A julgar pela beleza, talvez fosse
princesa de um castelo derrotado na guerra e precisava manter
em sigilo sua identidade para não ser descoberta pelos
soldados inimigos.
- Ora
não fique chateada. Não precisa responder. Perguntei
por perguntar. Só peço que volte a sorrir, pois
você tem o sorriso mais lindo que já vi.
Os dois se deram muito bem e ela foi ficando na casa de Kihei
cuidando de todos os afazeres domésticos. Kihei estava
completamente apaixonado por ela e pediu-a em casamento. A moça
concordou com a condição de que ele jamais perguntasse
nada a seu respeito.
Os
dias que se seguiram foi de muita felicidade para o casal. A floresta
que até há poucos dias parecia triste e solitária
para Kihei, como por encanto se transformou num paraíso.
Eles corriam pela mata apanhando frutos silvestres, subindo em
árvores e nadando nos riachos. Eles se tornaram inseparáveis,
ela o ajudava a cortar e carregar a lenha e em todos os trabalhos
que ele precisasse executar. Ela realmente era muito trabalhadeira,
dormia muito pouco e mesmo quando Kihei estava descansando, ela
continuava fazendo os serviços do lar.
O tempo
passou e um dia ela confidenciou ao marido que estava grávida.
Kihei ficou muito contente. Uma criança viria para completar
a felicidade daquele lar no meio da floresta. Meses depois, próximo
da data prevista para o nascimento do bebê, ela fez um pedido
estranho.
- Quero dar a luz no depósito de lenha. Peço que
levante paredes bem fechadas para deixar o local escuro.
Como
havia prometido não questionar nada à respeito dela,
Kihei atendeu prontamente o pedido e fechou o depósito
da melhor maneira possível. Sete dias depois, ela disse:
- O
momento está bem próximo, quero ter a criança
sozinha, prometa que não irá ao depósito,
nem que seja apenas para dar uma espiadinha.
Kihei
achou estranhíssimo o pedido dela, porém prometeu
que não iria ver, pois amava-a demais para contrariar seus
desejos. Assim ela se internou no depósito.
Continua...
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