Adaptação
livre de Claudio Seto
(Texto
e desenhos: Claudio Seto)
A
Tarefa diária do garoto Hikoiti era catar gravetos na mata
e acender o fogo, para esquentar a água do furô (banheira
de imersão). Certo dia, após juntar galhos secos,
o garoto sentou-se embaixo de um pé de castanha para saborear
seu bentô (lanche), que consistia basicamente de oniguiri
(pelota de arroz), tsukemono (verdura em conserva) e chá.
Naquela época, garrafa de louça ou de vidro era
artigo de luxo no Japão e por isso as pessoas comuns colocavam
o chá ou outras bebidas para viagem em canudos de bambu.
Ao
dar a primeira mordida em seu lanche, Hikoiti foi atingido na
cabeça por uma castanha. O garoto virou a cabeça
para ver de onde aquela semente estava caindo, mas não
conseguiu localizar nada. Quando voltou-se para continuar seu
lanche, levou um tremendo susto porque o mesmo estava flutuando
e aos poucos foi desaparecendo, como quem é devorado pelo
ar. Diante do espetáculo inusitado, o garoto fugiu apavorado
do local.
Mais
tarde em sua casa, enquanto acendia fogo na banheira, assoprando
a brasa com um hifuki (canudo de bambu que tem um pequeno furo
na ponta), lembrou que certa vez ouviu dizer que o Tengu (gênio
da montanha) tem um Kakurê Mino, o manto da invisibilidade.
-Ah!
Só pode ser isso, fui tapeado pelo Tengu que roubou meu
lanche. Pensou Hikoiti.
Garoto travesso, logo pensou em apoderar-se do manto em desforra
ao seu lanche. Levando seu hifuki (canudo de bambu de assoprar
o fogo), voltou para baixo do pé de castanha, local onde
largara os gravetos recolhidos.
Logo
depois, Hikoiti colocou o canudo de bambu diante dos olhos, como
quem espia por uma luneta e ficou fazendo uma encenação
teatral em voz alta:
-Oh! que maravilha. Posso ver Miyako, a capital do Japão!
como é bela a cidade de Quioto!
Atraído pela curiosidade, o Tengu que se mantinha invisível
foi se aproximando.
-Vejo tudo ! Posso ver o que as pessoas estão fazendo na
capital, que maravilha! Dizia o garoto eufórico.
- Posso dar uma espiadinha nesse tubo mágico? Perguntou
o Tengu tirando o manto de palha e tornando-se visível.
- Não
é possível. Esse objeto é um tesouro familiar
e não posso deixar em mãos estranhas.
- Mas, só quero dar uma olhadinha. Insistiu o Tengu.
- Agora não, respondeu Hikoiti. Uma bela donzela está
tomando banho de ofurô (o mesmo que furô - banheira
de imersão) ..oh! como é bonita ! Deve ser uma princesa
! Nunca vi alguém tão linda! Dizia Hikoiti olhando
pelo tubo de bambu.
A encenação do garoto triplicou a curiosidade do
Tengu:
- Por favor garoto, peço gentilmente que me permita uma
espiadinha... senão vou tomar esse tubo mágico na
marra.
- Permitir
o uso simplesmente não posso, pois o senhor pode fugir
com meu valioso canudo mágico. Porém se você
dispor de algum objeto igualmente mágico para deixar como
garantia, posso pensar no assunto. Propôs Hikoiti.
- Bem...
tenho essa capa da invisibilidade, será que serve?
- É, acho que está bem. Mas lembre-se senhor só
uma espiadinha.
O Tengu entregou o manto de garantia e Hikoiti emprestou a luneta.
Enquanto em vão o Gênio da Floresta tentava ver a
maravilhosa capital japonesa, o garoto vestiu o manto e tornou-se
invisível.
- Não estou vendo nada. Hei, cadê você garoto?
O Tengu, que era tido como um sábio por muitos samurais,
percebeu que havia sido enganado por um garotinho qualquer.
De
posse do manto e invisível como estava, Hikoiti chegou
correndo à aldeia e começou a aprontar suas travessuras.
Passou rasteira nos garotos que encontrou pelo caminho, provocando
uma briga entre eles, pois cada um achava que foi o outro.
Quando
passou pela estalagem na beira da estrada, coincidiu que o comerciante
estava servindo um viajante, chá com espetinho de kibidangô
(bolinho de milhete). O garoto pegou então a xícara
de chá com uma mão e com a outra o espeto de bolinhos
e começou a comer gulosamente. Vendo a xícara e
os bolinhos flutuando, todos da estalagem pensaram que era obra
de algum fantasma.
Depois
de assombrar toda aldeia, Hikoiti voltou para casa e guardou cuidadosamente
o manto da invisibilidade na gaveta da cômoda.
Na manhã seguinte, enquanto Hikoiti dormia, sua mãe
que recolhia roupas sujas para lavar, encontrou o manto na gaveta:
-Credo que capa imunda, onde será que o garoto achou essa
velharia. Esse garoto não toma jeito, trás todas
as porcarias que encontra na rua para dentro de casa. Vou queimar
essa sujeira senão é capaz de transmitir alguma
doença.
Dizendo
isso, a mãe de Hikoiti levou o manto de capim para o quintal
e ateou fogo.
Sentindo um cheiro de fumaça diferente, Hikoiti acordou
assustado e chegou a tempo de pegar o manto em chamas e levar
correndo para perto do poço. Mas, enquanto o balde descia,
o manto foi consumido totalmente pelo fogo.
Desconsolado,
o menino lamentava o ocorrido, mexendo nas cinzas pois era só
o que restou do manto. De repente teve uma grande surpresa ao
perceber que suas mãos se tornaram invisíveis. Ocorreu-lhe
então que se passasse as cinzas pelo corpo tornaria completamente
invisível. Tirou a roupa e banhou-se de cinzas, esfregando-as
em todas as partes do corpo.
Novamente invisível, Hikoiti recuperou o bom humor e dirigiu-se
para a aldeia. No meio do caminho, o deslocamento do ar chamou
a atenção de um cachorro que desconfiado resolveu
seguir algo que se movia mas não era visível.
Hikoiti
entrou em um restaurante e comeu o sobá (talharim) que
a garçonete estava servindo a um freguês numa tigela.
Algumas pessoas que estavam no local saíram gritando pela
rua que o fantasma do dia anterior havia voltado. A aldeia entrou
em polvorosa. Mas, enquanto degustava o talharim um fato inesperado
ocorreu. O caldo do macarrão tirou as cinzas ao redor da
boca de Hikoiti deixando-a visível. Nisso o cachorro avançou
latindo em sua direção e o garoto saiu correndo
pela rua.
- Peguem
essa boca voadora - dizia o pessoal que estava no restaurante,
enquanto perseguia a boca fujona.
Na fuga, o garoto tropeçou e caiu dentro do riacho que
cortava a aldeia. A água tirou todas cinzas do corpo de
Hikoiti e ele tornou completamente visível.
Descoberta
a malandragem, Hikoiti foi condenado a trabalhar na horta comunitária,
para pagar com as colheitas os danos que havia causado na aldeia.
|