(Por
Claudio Seto)
Há
muito tempo vivia no Japão um jovem iniciado na religião
Shintô que era devoto de Zenchi no Mikoto o deus
da Graça. Pelo fato dele gostar de peixe tinha como desejo
fazer muitas oferendas de yakizakaná (peixe assado na brasa)
à divindade. Porém, como era desprovido de recursos,
lamentavelmente não conseguia comprar os peixes. Assim,
todas as vezes que ia ao bosque sagrado confidenciava com as árvores,
confessando sua boa intenção e lamentando sua impossibilidade.
Um
dia, enquanto falava com as árvores, ouviu a voz da divindade
Zenchi no Mikoto:
-Ora meu bom amigo, não se preocupe em me oferecer peixes.
Sei que não tem dinheiro, mas tem algo muito mais precioso
do que isso, que é o seu bom coração. Sei
que você costuma conversar com as árvores e, muitas
vezes, não ouve a resposta delas porque o canto dos pássaros,
às vezes atrapalha. Por isso, vou lhe dar um chapéu
que ao usá-lo poderá ouvir o que os pássaros
estão dizendo.
Assim
que a voz se calou, o moço viu no galho a sua frente um
chapéu pendurado. Fazendo reverências à divindade
que deveria estar junto a árvore, o jovem apanhou o chapéu
de forma cônica com todo cuidado e deixou o bosque sagrado
em direção da aldeia onde morava. Durante o percurso
ao ver uma árvore seca e corvos pousados em seus galhos,
parou porque lembrou um haiku (haikai) de Bashô:
kare
eda ni
karassu no tomarikeri
aki no kure
corvos
pousados
em galhos secos:
entardecer de outono
Como
o homem estava usando o chapéu em forma de cone, conforme
lhe dissera o deus Zenchi no Mikoto, passou a ouvir a conversa
dos pássaros. Entre muito bate-papo, falando de frutas
gostosas, uma narrativa chamou a atenção do jovem:
- Pois
é, se ninguém fizer nada, a filha do milionário
da aldeia vai morrer.
- O que é uma pena, uma menina tão boazinha. Mas
porque ela ficou tão doente?
- Você não sabe? Olha, quando o milionário
mandou construir novos aposentos em sua mansão, o carpinteiro,
sem perceber que havia uma cobra escondida, pregou-a junto as
tábuas do assoalho. Assim a cobra ficou pregada ali, sem
se mover. Sua companheira é que leva comida todos os dias
para sua sobrevivência. Acontece que cada vez mais a cobra
está ficando debilitada e vai acabar morrendo.
- Ah,
já entendi, disse o outro pássaro, a filha do milionário
dorme no aposento onde debaixo do assoalho está a cobra
pregada. Sem que ela saiba, está captando as vibrações
de sofrimento da cobra ferida. Por isso está doente e debilitada
a ponto de não mais poder levantar do leito.
- Em suma, se a cobra morrer, ela também não resistirá.
Ao
ouvir a conversa dos pássaros, o homem foi em direção
da aldeia muito preocupado. Queria salvar a menina, porém
desconfiava que, sendo um pobretão, sequer seria ouvido
pelo pessoal da mansão do milionário. Precisava
achar um meio de entrar na mansão para contar tudo o que
sabia.
Nisso
lhe ocorreu uma idéia. Cortou as pontas do rabo de um cavalo
branco e improvisou uma enorme barba postiça. Como já
estava com o chapéu cônico, bastou apanhar um galho
de base curvada para fazer de cajado e ficou com o aspecto perfeito
de um velho asceta da montanha. Assim rumou para o portão
da mansão e começou a gritar:
- Olha o vidente! Venham ler a sorte e saber do seu futuro com
o grande Ubasoku (mago).
Movido
pela preocupação da persistente e misteriosa doença
da filha, assim que ouviu os gritos, o homem rico imediatamente
mandou chamar o vidente. Assim que o mago entrou, o milionário
tentou explicar porque ia precisar de seus serviços, porém,
o vidente foi logo dizendo:
- Não precisa dizer nada, leve-me por favor, ao aposento
da sua filha e chame imediatamente o carpinteiro.
No
quarto da linda e enferma mocinha, o velhinho começou
a rezar para que seu protetor indicasse o local onde estava a
cobra pregada, repetindo seguidamente o mantra Zenchi On no Mikoto,
Zenchi On no Mikoto, Zenchi On no Mikoto...
Assim que o carpinteiro chegou, o mago ordenou:
- Levante aquela tábua, existe uma cobra presa entre ela
e a viga de sustentação.
Dito
e feito. Arrancado a tábua, lá estava a cobra pregada.
Com todo cuidado o prego foi retirado do seu corpo e passaram
medicamento no ferimento. No dia seguinte, a cobra já parecia
bem melhor e foi solta no mato. Milagrosamente a garota também
começou a melhorar e em pouco tempo já estava restabelecida,
voltando a ser a mesma mocinha cheia de vida.
Agradecido
o milionário presenteou o homem com muito, mas muito dinheiro.
O mago que ficou conhecido com o nome de Shamon, precisava de
dinheiro somente para comprar peixe e fazer yakissakaná
para oferecer a Zenchi no Mikoto. Mandou construir um santuário
no bosque para que mais pessoas pudessem receber as graças
da divindade Zenchi.
Outra
versão mais romântica desta história conta
que, mais tarde, Shamon se casou com a bela filha do milionário
e foram felizes para sempre.
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