(Por
Claudio Seto)
O
PRÍNCIPE CAÇULA
Furotaki Hime acordava bem cedo e tirava baldes e baldes de água
do poço. Ela cuidava dos banheiros dos nobres e também
da criadagem. Corria o dia todo lavando banheiros e esquentando
a água para que todos pudessem tomar um gostoso banho quente.
Somente depois que a última pessoa tomasse seu banho ela
podia descansar. Por isso, às vezes, ficava trabalhando
até altas horas da noite. Cansava-se muito e tinha as mãos
toda machucada de tanto rachar lenha e carregar baldes de água.
Às
vezes, enquanto assoprava o fogo lembrava-se de como tinha sido
feliz na mansão de seu pai, o nobre Kawachi no Sanetaka,
sempre cercada de criados prontos para servi-la, começava
a chorar. Agora eram os criados que a maltratavam e a obrigavam
a trabalhar sem parar. Tudo era muito difícil para seu
corpinho esguio que nunca conhecera trabalhos pesados. Um dia,
enquanto derramava lágrimas olhando para suas mãos
machucadas e cheio de calos, o filho caçula de daimyô
aproximou e lhe entregou um pequeno pote de creme.
- Passe
esse creme que vai aliviar a dor de suas mãos. Tenho observado
o quanto é trabalhadora. O serviço é muito
pesado para você, mas agüente firme que dias melhores
virão.
A partir da data, diariamente o Príncipe Caçula
vinha conversar com Hime procurando confortá-la. A presença
dele era um bálsamo dentro daquela vida sofrida e humilhada
que a moça levava. Assim, o príncipe começou
a gostar dela, mesmo sem nunca ter visto seu rosto.
Mas
esse afeto não agrava a família do jovem príncipe,
que era o único solteiro entre quatro irmãos. Os
pais e os irmãos mais velhos se reuniram e resolveram mandar
a moça da tina na cabeça embora do castelo.
Ao
saber da decisão da família, o Príncipe Caçula
ajoelhou-se diante do pai e suplicou:
- Honorável senhor, o que será da orfã Furotaki
Hime se mandarem embora? Ela é uma menina maravilhosa,
eu quero para minha esposa. Peço o seu consentimento.
- Quer se casar com ela? Está maluco Príncipe Caçula?
disse o daimyô assustado.
- Como? Com aquela criada que tem tina no lugar de cabeça?
gritou indignada a mãe do príncipe.
A corte
ficou em alvoroço quando o príncipe declarou que
se mandassem a menina embora, ele iria junto. Diante o impasse
criado, os pais que não queriam perder o querido filho
caçula, resolveram deixá-la no castelo, até
encontrar uma solução satisfatória à
todos.

DE
COMO AFASTAR UMA INDESEJÁVEL
Todos os conselheiros da corte foram convocados.
O senhor feudal exigiu que encontrassem um modo de afastar a garota
com tina na cabeça, do castelo sem que o Príncipe
Caçula percebesse ou ficasse ofendido. Os sábios
puseram a cabeça para pensar, mas nenhuma idéia
genial brotou delas.
Muito
amargurada, a senhora do castelo, conversando com a velha e fiel
governanta perguntou:
- Será que não existe alguma feitiçaria para
afastar a Cabeça de Tina do meu filho?
- Claro que existe, senhora disse a governanta.
Que tal promover um encontro cultural como fazem na entrada das
estações do ano. Peça para seu filho caçula
convidar a Cabeça de Tina, para ir acostumando com os membros
da família, já que ele a quer para futura esposa.
Claro que ela não virá, pois não tem vestimenta
adequada para tal ocasião. A única roupa que ela
tem é uma velha roupa de criada. Mesmo que tivesse um quimono
luxuoso, como alguém seria capaz de se apresentar a um
encontro cultural com uma tina na cabeça?
- Se
não comparecer, não poderá mais permanecer
no castelo pois fez a afronta de recusar o convite de Senhor Daimyô.
Observou a senhora.
- E se for tão descarada a ponto de comparecer usando seu
esfarrapado vestido, o Príncipe Caçula ficará
envergonhado vendo-a perto das cunhadas luxuosamente vestidas.
E ficará totalmente decepcionado quando começar
a reunião cultural, pois que talento literário ou
musical pode ter uma pobre criada? Ele nunca mais vai querer saber
dela!
Todos
da família acharam ótima a idéia da velha
governanta. E assim ficou resolvido. Quando o convite para participar
da reunião chegou aos ouvidos de Hime, ela baixou a cabeça
e disse tristemente:
- Sei o que pretendem com essa reunião cultural. Vou embora
para bem longe.
O príncipe tentou dissuadí-la, mas Hime não
via outra saída. Então o príncipe resolveu
ir junto e ela chorou de alegria e gratidão. Era uma grande
demonstração de amor, mesmo sem nunca ter visto
seu rosto.
Os
dois deixaram o castelo de madrugada. Já haviam andado
boa distância quando o clarão do sol os alcançou.
Iluminada pelos raios solares, ela juntou as mãos e fez
reverência em direção do Templo Hase, pedindo
proteção aos dois, para a deusa Kannon. Nesse momento,
como por encanto, a tina desprendeu de sua cabeça e rolou
ao chão.
O Príncipe
Caçula ficou paralisado de emoção. O lindo
rosto que estava oculto pela tina resplandeceu aos raios do sol.
Hime era realmente uma princesa. Dentro da tina havia uma caixa
laqueada que abriu ao cair no chão, mostrando todo seu
conteúdo que eram jóias e moedas de ouro. Ao apanhá-las
Hime compreendeu o que sua mãe disse antes de morrer e
agradeceu chorando de alegria.
A princesa
contou quem era e tudo que aconteceu ao príncipe. Ele ficou
feliz ao saber que era uma princesa de verdade e quis leva-lá
de volta ao castelo. Porém, resolveram que era melhor irem
até a capital, Heian-kyo, comprar vestimentas adequadas
ao encontro cultural e assim seguiram viagem.
O
ENCONTRO CULTURAL
O desaparecimento do príncipe causou certa
preocupação na família, porém logo
todos se acalmaram ao saber do conselheiro-mor que o Caçula
logo voltaria, pois não havia levado dinheiro nenhum.
Como
o encontro cultural estava formalmente marcado e o pessoal do
cerimonial já havia providenciado boa parte dos preparativos,
resolveram fazer mesmo sabendo de antemão que Cabeça
de Tina não viria. Para surpresa geral, no dia marcado,
o Príncipe Caçula retornou ao castelo e foi se vestir
adequadamente para o evento. Sabiamente resolveram que ninguém
deveria interrogá-lo a respeito de Cabeça de Tina,
para não fazê-lo lembrar da garota. Ignorá-la
seria a melhor forma de demostrar desprezo.
Na
hora marcada, o grande salão estava lotado de ricos convidados.
Os filhos dos senhor feudal, um a um, por ordem de idade, entraram
no luxuoso recinto acompanhados das respectivas esposas, magnificamente
trajadas de ricas vestimentas.
Quando
chegou a vez do caçula, todos olharam com sorriso disfarçado
de chacota, e logo se transformou em um grande estupor: eis que
surge na porta o Príncipe Caçula acompanhado de
uma mocinha belíssima e luxuosamente vestida. A aparição
dela ofuscou a todos.
- Parece uma tennin (ninfa celeste)!- observou um dos convidados.
No
local reservado ao Príncipe Caçula só havia
uma almofada, o próprio daimyô apressou em sinalizar
que os servos colocassem uma almofada para a princesa. No grande
salão só se ouvia suspiros de admiração
a beleza e postura de Hime. Isso deixou as três noras do
mandatário inconformadas de ficar em segundo plano diante
a formosura da Cabeça de Tina.
- O
que não faz uma boa e luxuosa vestimenta! O Príncipe
Caçula deve ter comprado para ela na capital. Disse a nora
mais velha.
Mas ela será humilhada assim que começar a competição
cultural. Uma criada, aquecedora de banheiro, jamais saberá
tocar um instrumento musical como biwa (mandolina), shô
(flauta) tsuzuri (tamborete) ou koto (instrumento de treze cordas).
Observou a segunda nora.
No
concerto musical, cada uma pega um instrumento e vamos deixar
o koto, que é o mais difícil, para ela. Sugeriu
maldosamente a terceira nora.
O Príncipe caçula estava visivelmente preocupado
quando deram o koto para Hime tocar. Mas quando ela começou
a dedilhar as cordas, uma música maravilhosa invadiu e
tomou conta do ambiente. No final do concerto, todos os aplausos
foram para Hime.
Em
seguida, procedeu-se a competição poética.
Cada princesa com um pincel e um papel tinha que criar uma poesia
waka no formato tanka (31 sílabas) sem errar na grafia.
Para Hime foi pedido uma poesia que citasse as flores de pelo
menos, três estações. As noras sabiam que
desta vez a Cabeça de Tina ficaria envergonhada,
pois essa prova, não só exigia inspiração
poética como domínio completo da caligrafia. Letras
feias e sem firmeza seriam um fiasco. E naquela época,
apenas os nobres sabiam ler e escrever.
Quando
Hime começou a escrever, todos ficaram maravilhados, pois,
apresentou com sua harmoniosa e elegante letra o seguinte poema:
Primavera
é sakura
Verão é tachibana
Outono é kiku
Em qual das flores
O orvalho pousará?
(sakurá
= flor de cerejeira, tachibana = malvaísco flor perfumada,
kiku=crisântemo)
Assim,
de surpresa em surpresa, Hime venceu todas as provas. O senhor
feudal ficou encantado com a noiva do Príncipe Caçula
e não parava de lembrar que foi ele quem a trouxe para
o castelo. Quando Hime revelou que era filha de Kawachi no Sanetaka
todos entenderam porque ela tinha tantos predicados e educação
refinada. Conforme observou os conselheiros, Sanetaka tornou-se
um grande herói na guerra e ao retornar foi homenageado
pelo imperador.
- É
impossível que ele tenha retornado, minha madrasta me disse
que meu pai morreu em combate.
Imediatamente
o daimyo mandou mensageiros averiguar o que tinha acontecido à
Sanetaka. Simultaneamente construiu uma enorme mansão para
o Príncipe Caçula e Hime morarem.
Os mensageiros retornaram meses depois com a notícia de
que realmente Sanetaka havia retornado às suas terras como
herói, condecorado pelo imperador, porém tempos
depois desapareceu misteriosamente e seu castelo estava abandonado.
GOVERNADOR
DE PROVÍNCIAS
Hime, as vezes ficava pensativa lembrando de seu
pai. O desencontro teria origem quando ela andou sem rumo por
vários anos pensando que ele foi morto na guerra. Fora
isso o casal vivia muito feliz. Depois que foram morar na nova
mansão, o Príncipe Caçula foi convidado à
prestar serviços ao Imperador. Satisfeito com a dedicação
do jovem, o Imperador lhe presenteou com o título de governador
de três províncias.
Para
agradecer essa graça recebida, o casal foi rezar para a
deusa Kannon no templo Hasse em Osaka. Enquanto rezavam, Hime
notou um velho monge com vestes esfarrapadas. Olhando direito
viu que se tratava de seu pai, estava com a cabeça raspada
e bastante envelhecido.
- Pai! Sou eu Hime...
O velho
monge espantado num primeiro momento, derreteu-se em lágrimas
logo a seguir.
- Minha princesinha, você está bem?... Tenho procurado
por você todos esses anos.
Os dois choraram abraçados até os sinos do templo
Hase soaram anunciando a chegada do anoitecer. Sanetaka contou
que, quando ele voltou da guerra, a segunda esposa lhe disse que
Hime havia abandonado o lar em companhia de um teatro mambembe.
Desde então, cada vez que ouvia dizer que havia um teatro
ambulante em determinada região, corria para lá
para ver se encontrava sua filha.
Assim
seu castelo ficou abandonado e sua esposa voltou para a casa dos
pais. Como o dinheiro acabou, tornara-se monge para sobreviver
mendigando enquanto procurava Hime.
O pai
e a filha agradeceram à deusa Kannon por proporcionar aquele
encontro. Sanetaka foi morar com o casal, tornando-se um dos conselheiros
do governador Príncipe Caçula e viveu feliz o resto
de seus dias rodeado de netos.
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