(Por
Claudio Seto)
No
século XVIII, na era Guenroku, governado por Tokugawa Tsunayoshi,
aconteceu um incidente envolvendo vingança e seppuku que
se tornaria famoso como o caso dos shijushiti-shi (47 guerreiros).
Um daimyo (feudatário), Asano no Kami Naganori, havia sido
escolhido para recepcionar o shogun e como o cerimonial era muito
complexo, pediu ajuda para um dos mais altos funcionários,
Kira Kozukenossuke Yoshinaka, o grande mestre de cerimônia
do shogunato.
Mas
o ganancioso Kira propositalmente ridicularizou e humilhou Asano
em público. Asano, segundo os métodos de conduta
dos samurais (bushi) atacou Kira para tentar restabelecer sua
honra, mas não teve sucesso. Julgado, o daimyo foi condenado
ao seppuku pelo shogunato. Kira, muito bem visto na corte, não
foi nem sequer repreendido.
Sem
o seu mestre, os guerreiros de Asano se reuniram secretamente
e resolveram vingá-lo. Para não levantar suspeitas,
os 47 samurais passaram meses desonrando suas famílias,
entregues às bebidas e mulheres. Tudo isso para mostrar
que haviam esquecido da tragédia com seu líder.
A
Vingança
Na
noite de 14 de dezembro de 1702*, Kira Kozukenosuke ofereceu uma
grande festa regada a saquê. E todos seus guerreiros acabaram
ficando bêbados. Sem que ninguém esperasse, o profundo
silêncio dos bairros aristocráticos de Edo, adormecidos
sob a neve, foi rompido pelo som de tambor do capitão Oishi,
o tinido das armas, os gritos de combate. Os quarenta e sete fiéis
servidores, armados dos pés à cabeça posicionaram-se
em frente a residência de seu inimigo. Usando faixas na
cabeça e roupas confeccionadas especialmente para a ocasião,
os vingadores arremessaram escadas de cordas sobre o muro coberto
de neve e adentraram na residência de Kira.
Travou-se
um ligeiro combate no pátio, mas os poucos guardas que
ainda estavam sob o efeito do álcool não constituíram
barreira. Em pouco tempo os portões foram abertos. Com
a planta da casa nas mãos, tomaram de assalto a residência
de Kira Kozukenossuke, abatendo os samurais que encontravam nos
corredores a golpes de espada, invadiram os quartos, e rumaram
direto para a alcova de Kira. Este não se encontrava lá,
mas os vingadores perceberam que os acolchoados ainda estavam
quentes. e ele teria fugido ao ouvir gritos de luta pelos corredores.
Os
ronin sabiam que deveria estar escondido em algum ponto do cercado.
Procuraram por todas as partes, mas não o encontraram.
Finalmente desconfiaram que havia alguém escondido dentro
da cabana de carvão no depósito. Um dos ronin enfiou
a lança através da parede da cabana, e sentiu que
atingiu alguma coisa. Mas ao retirá-la não havia
sangue. O fato é que Kira fora atingido, porém,
ao ser recolhido a arma, ele limpava-a com a manga do kimono.
De nada adiantou o seu estratagema, porque a terceira fincada
atingiu seu braço. Quando os vingadores obrigaram-no a
sair, ele afirmou que não era Kira, apenas seu chefe de
depósito.
Naquele
momento, um dos quarenta e sete lembrou-se do ferimento na testa
produzido em Kira pelo daimyo Asano, no palácio do Shogun.
Através da cicatriz identificaram Kira e convidaram-no
cortesmente à praticar o harakiri de imediato. Kira recusou-se,
o que comprovava, evidentemente, a sua covardia. Daí, com
a arma que o próprio Assano utilizara no seu harakiri,
eles deceparam a cabeça do inimigo.
O dia
amanheceu com a neve manchada de sangue. Então, o cortejo
dos quarenta e sete ronin, em boa ordem militar, levando a espada
duplamente ensangüentada e a cabeça decepada, atravessou
a cidade de Edo, para ir depositar no templo Sengakuji, sobre
o túmulo de Asano vingado, a cabeça do inimigo.
A notícia
correu como rastilho de pólvora, Edo inteira encheu-se
de entusiasmo com a proeza dos quarenta e sete. Suas famílias
e sogros, que haviam duvidado deles, correram a abraçá-los
e a render-lhes homenagens. Poderosos senhores ofereceram hospitalidade
ao longo do caminho. Prosseguiram eles até o túmulo
e lá depositaram não apenas a cabeça e a
espada, como também uma comunicação escrita
ao seu senhor, ainda conservada.
Hoje
aqui viemos prestar homenagem...
Não ousaríamos nos apresentar diante de vós,
sem que houvéssemos consumado a vingança por vós
iniciada. Cada dia que aguardamos, afigurou-se-nos três
outonos...
Acompanhamos o senhor Kira até aqui ao vosso túmulo.
A espada que tanto valorizastes no ano passado e a nós
confiastes, devolvemos agora. Tomai-a e golpeai a cabeça
do vosso inimigo uma segunda vez, assim vos rogamos, e para sempre
dissipai o vosso ódio.
Eis
o respeitoso relato dos shijushiti-shi (quarenta e sete samurais).
O
bakufu deliberou durante muito tempo: durante dois meses, os ronin
colocados em detenção em várias famílias
nobres e tratados com muita consideração, esperaram
o veredicto. A simpatia e admiração públicas
pelos bravos ronins foi geral e praticamente unânime. Dentro
do próprio shogunato, existiam opiniões favoráveis
à absolvição dos guerreiros. Mas os quarenta
e sete haviam violado leis fundamentais do bakufu, destinada a
manter a ordem e a paz, praticando vingança não
declarada. Pouco meses depois, eles receberam a ordem de se imolarem
praticando o harakiri. Todos os quarenta e sete fazem o seppuku
com a mesma segurança e sangue frio com que executaram
a vingança.
O
acontecimento transformou-se numa legenda, num verdadeiro mito.
Sob a denominação de Tchushingura (Tesouro dos Corações
Fiéis) já em 1706, Chikamatsu* apossou da história.
A sua narrativa se repete ainda hoje com sucesso em toda forma
de representação artística: teatro, teatro
de marionetes, kabuki, cinema, série de televisão,
literatura, histórias em quadrinhos, narrativa falada (kôdan),
conquistaram definitivamente os corações dos japoneses.
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COMENTÁRIOS:
Na era Guenroku*, quando aconteceu o caso dos Quarenta
e Sete Súditos Fiéis, os princípios
fundamentais do governo Tokugawa eram guiados pelo confucionismo,
doutrina ética chinesa, onde o dever e a hierarquia eram
levados muito à sério. O regime Tokugawa era autoritário,
mas seu absolutismo não aspirava a totalidade: a moral
de clã e de família era respeitada, na medida em
que, por sua parte, a vingança tomasse o cuidado de se
isentar de qualquer designo político. Os autores do Tchushingura*
tiveram uma visão otimista: através das peripécias
mirabolantes, o bem triunfa, e a paz do Estado se harmoniza no
final com as exigências da lealdade vassálica.
Era pela instituição do seppuku que essa conciliação
podia se operar. Na interseção da ordem publica
e da honra feudal, a morte voluntária recebia sob a forma
de tsumebara o duplo sentido de um expiação e de
uma apoteose. Essa ambigüidade manifestava a articulação
dos dois elementos da substância ética: enquanto
esse ferrolho agüentasse, elas não entrariam em divergência.
A morte, com a condição de ser aceita de antemão,
dava satisfação à honra tanto quanto ao Estado.
Desse modo, os quarenta e sete podiam, portanto, considerar-se
como já mortos e assim evitar de serem considerados assassinos.
Na
época respeitava-se a vingança como virtude, do
mesmo modo que a gratidão. Para com quem nos fez o mal
como para com quem nos fez o bem, o dever (gui, guiri*) prescreve
que sejamos justos e não esqueçamos nunca uma nem
outra dívida. Esse dever de vingança estabelece
na morte voluntária a prova de sua sinceridade. Abre-se
o ventre, bota toda entranha para fora e mostra que nada tem a
esconder. Se alguém tem que se vingar, que o faça
na condição de morrer depois, para não dar
continuidade ao ódio entre as famílias. O ato em
si, demonstra assim que o ódio foi ultrapassado e que a
ação foi de acordo com a justiça.
Além
de grande lição de ética, o efeito moral
do harakiri vinha juntar-se a vantagens políticas: uma
sanção capital, aceita antecipadamente, limitava
os riscos de contágio em escalada, que toda vingança
comporta. Quando os quarenta e sete atravessaram em cortejo a
cidade de Edo, corriam o risco de serem atacados por homens do
daimyo Uesugui, aliado a Kira. Teriam sido defendidos, pela clã
Matsudaira, da qual Asano era um dos caçulas. Até
onde isso teria chegado, nessa progressão não se
sabe. Mas sabia-se que eles iam morrer, que tinham escolhido seu
destino: passaram rodeados pelo respeito de seus próprios
inimigos. Ninguém os atacou, e a vingança claramente
circunscrita extinguiu-se com eles.
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NOTAS:
* Alguns autores dão essa data como 30 de janeiro
de 1703, provavelmete este foi o dia do seppuku dos 47.
*
Chikamatsu Monzaemon (1653-1724), o maior dramaturgo do Japão.
Escreveu centenas de peças históricas (jidaimono)
e domésticas (sewamono).
*
Era Guenroku, 1688-1704 governado pelo shogun Tokugawa Tsunayoshi.
No ano de 1703 o imperador do Japão era Higashiyama Tenno.
*Tchushingura
(ou Chushingura), O Tesouro dos vassalos fiéis
, drama escrito por Takeda Izumo (1691-1756) em colaboração
com Miyoshi Shosaku e Namiki Senryo em 1748. É a mais célebre
obra inspirada na vingança dos Quarenta e Sete Samurais.
(Nota: o termo certo seria 47 ronins já que
estavam sem amo. Porém, agiram como verdadeiros samurais
numa época em que a classe guerreira estava em decadência,
daí, lhes é atribuído o termo bushi (samurai),
por questão de dignidade.)
*Guiri,
obrigação, dever, dívida moral que liga o
sujeito a qualquer pessoa da qual tenha recebido benefício
ou favor.
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