(Por
Claudio Seto)
A vingança do defunto
Foi
então que se vingou! Seu inimigo Fujiwara no Tokihira que
tramou a calúnia, morreu logo depois, no auge do poder.
E mais tarde seu neto com a idade de vinte anos e seu bisneto
de quatro anos, que possivelmente seriam levados ao trono também
morreram. Vingança de Michizane, foi a interpretação
sugerida por seus amigos, pelo inimigos de seus inimigos, talvez
até também pelo sentimento tardio de culpa de seus
caluniadores. Interpretação imediatamente confirmada
pela superstição do povo, sempre disposto a imputar
os malefícios do acaso à malignidade de uma intenção
oculta. Numa época sem luz elétrica e cheio de enormes
mosteiros e palácios com corredores sem fim, a idéia
de que um inimigo poderia ser mais perigoso morto que vivo, era
pensamento corrente. Quando se tratava de vingança de um
defunto, o medo era maior, pois espada de samurai, por mais afiada
que fosse, não cortava assombração.
O pânico
tomou conta do poder. Qualquer barulho na calada noite era atribuído
à Michizane. Dessa paranóia geral, uma sucessão
de casos surgiram e viam o fantasma do ministro por toda parte.
Muitas mulheres do clã Fujiwara chegaram a ficar dementes
e outras se refugiaram em mosteiros, sob proteção
de monges nada santos. Valentes guerreiros foram convocados para
enfrentar a aparição e religiosos budistas realizaram
longas cerimônias místicas para exorcizar o espírito
do defunto. O que num primeiro momento pareceu satisfatório,
se mostrou ineficiente na seqüência. De 909 a 911,
houve epidemias, inundações e incêndios, cujo
autor ninguém tinha dúvidas: Michizane! Ele tinha
morrido há trinta anos, mas continuavam a lhe atribuir
todas espécies de represálias.
Depois
de ter sido o mais submisso dos súditos, mostrou-se o defunto
mais turbulento. Contradição cheia de sentido: sob
a moral de Estado, que impunha obediência sem reservas à
autoridade imperial, subsistia a moral do clã, que fazia
da vingança uma virtude. Solução de compromisso:
podia-se tirar vingança, mas com uma condição
- devia-se estar pronto para morrer, consentir em expiar com a
vida as rivalidades que ameaçavam o repouso do Império.
Michizane
tinha quitado esse pagamento antecipadamente: sua submissão,
sua morte silenciosa, se não voluntária, pelo menos
consentida, davam-lhe o direito de perseguir os inimigos.
Finalmente
deram conta de que era preciso apaziguar a cólera póstuma
de Michizane que estava fazendo do país o caos. A corte
e a aristocracia foram unanimes em decretar reparações
solenes ao defunto injustiçado. Era cerimônia atrás
de cerimônia: ele foi reabilitado, reconheceram publicamente
sua inocência e lealdade, restituíram-lhe seus títulos,
conferiram-lhe novos e nomearam o morto Ministro dos Negócios
Supremos - um braço direito do imperador.
Como
se tudo isso não bastasse ao célebre defunto, no
ano 947, foi nomeado kami das letras (deus das Letras). Construíram
em sua homenagem e culto, o santuário de Kitano, ao norte
da capital - depois muitos outros, por toda parte do Japão.
Seu destino de obediência e de vingança, na interseção
de duas éticas em perpétuo diálogo, pareceu
tão exemplar que ele se tornou uma das divindades mais
populares do país, e assim, o Japão voltou aos bons
tempos de paz e prosperidade.
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