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Febre maculosa: uma doença do meio rural

Por Luciana Gatto Brito*

Até mesmo em ambientes naturais não modificados, a introdução de novas espécies de hospedeiros ou de parasitos pode acarretar estados extremos e alternados de agressividade recíproca. Assim, são representantes dessas instabilidades as grandes epidemias, a emergência ou ressurgimento de zoonoses e a proliferação ou o deslocamento de determinados grupos de artrópodes, como os carrapatos, que possibilitam a circulação da bactéria causadora da Febre Maculosa, denominada Rickettsia, entre os carrapatos e hospedeiros vertebrados em ecossistemas independentes do homem.

Membros do gênero Rickettsia, são morfologicamente e bioquimicamente similares a outras bactérias gram-negativas, porém são aprimorados organismos parasitas intracelulares obrigatórios que se encontram freqüentemente associados a alguma espécie de artrópodes, e apresentam-se como potencialmente patológicos à animais vertebrados, incluindo o homem, usualmente como hospedeiros acidentais.

A Febre Maculosa Brasileira, também chamada de Febre Maculosa de São Paulo, tem como agente etiológico o Rickettsia ricketsii, o mesmo agente responsável pela Febre Maculosa das Montanhas Rochosas nos EUA. Reconhecida pela primeira vez no Estado de São Paulo em 1929 e, aparentemente, circunscrita a áreas suburbanas da capital, foi identificada em outras regiões do Estado e também em Minas Gerais e Rio de Janeiro.

No contexto ecológico, espécies de carrapatos podem transmitir a rickettsia para determinadas categorias de animais silvestres, dentre eles cachorro-do-mato, preás, roedores silvestres e gambás. No Brasil, o carrapato estrela do cavalo (Amblyomma cajennense) é considerado o principal transmissor dessa bactéria. Os cães atuam como carregadores de carrapatos de animais silvestres para o peri-domicílio humano e constituem-se em importantes indicadores da atividade do agente. A maioria dos pacientes acometidos refere-se à picada de carrapatos, porém a falta dessa informação não exclui a possibilidade da doença, pelo potencial destes passarem desapercebidos.

A doença no homem pode ser aguda, febril e provocar manchas em todo o corpo iniciando-se pelas palmas das mãos e plantas dos pés ou com sintomas inaparentes, mimetizando o estado gripal. O período de incubação da doença no homem varia de 3 a 14 dias e o início é súbito, com febre, dor de cabeça, prostração, mialgias e confusão mental. A doença evolui para a gravidade em 2 a 3 semanas. Os casos fatais causados pela Febre Maculosa diminuíram drasticamente, após a descoberta de uma eficaz antibioticoterapia, além do uso intensivo de carrapaticidas sobre os animais domésticos.

No Brasil, relatos desta zoonose parecem estar limitados aos estados da região sudeste, porém, estudos de ocorrência de Febre Maculosa no Brasil, sugerem que a distribuição desta doença pode ser mais ampla do que se supunha.

O carrapato do cavalo, ou carrapato-estrela, pela necessidade de parasitar três hospedeiros, é a espécie de maior importância na transmissão da Febre Maculosa Brasileira por estar presente em todo território nacional. Devido à baixa especificidade parasitária, esse carrapato pode vir a atacar uma grande diversidade de animais domésticos, silvestres e também o homem, mas pode ser encontrado parasitando uma grande variedade de hospedeiros mamíferos e até mesmo aves. No Brasil, esse é o principal carrapato responsável pela transmissão da Febre Maculosa para o homem e animais domésticos e silvestres, porém em outras espécies de carrapatos, tais como, Amblyomma cooperi (carrapato de capivaras), Amblyomma ovale (carrapato que parasita canídeos) Anocentor nitens (carrapato da orelha do cavalo) e outras espécies do gênero Amblyommae já se identificou a presença da bactéria, portanto, tais carrapatos também podem ser implicados na manutenção da Febre Maculosa na natureza.

As rickettsias multiplicam-se nos tecidos do carrapato, ocorrendo tanto a transmissão transovariana quanto a transmissão transestadial. Essas características biológicas permitem ao carrapato permanecer infectado durante toda a sua vida e também por muitas gerações após uma infecção primária, mesmo na ausência de hospedeiros vertebrados parasitêmicos. Portanto além de vetores, os carrapatos são verdadeiros reservatórios das rickettsias na natureza, uma vez que todas as fases evolutivas, no ambiente, são potencialmente capazes de permanecer infectadas durante meses ou anos à espera de hospedeiro, garantindo um foco endêmico prolongado. Alguns vertebrados silvestres (roedores, gambás, etc.) também representam o papel de reservatórios ou depositários transitórios, infectando os carrapatos na fase de bacteremia (transmissão horizontal). Contudo, o ciclo transovariano é o principal responsável pela manutenção das rickettsias na natureza, pois permite a disseminação do patógeno para os milhares de larvas da geração. Já na transmissão horizontal, a aquisição da infecção pelo carrapato a partir de hospedeiros vertebrados parasitêmicos é freqüentemente errática e depende da parasitemia nesses hospedeiros.

O homem adquire a doença após ter sido picado pelo carrapato, ou seja, quando acidentalmente passa a integrar o ciclo endêmico rickettsia-carrapato-reservatório silvestre. Vale ressaltar que, para que haja a transmissão da Febre Maculosa por meio da picada dos carrapatos, estes devem permanecer fixados à pele do hospedeiro por um período variável de 4 a 20 horas, tempo necessário para uma possível reativação da R. rickettsii na glândula salivar do carrapato.

Portanto, a Febre Maculosa é uma patologia que possibilita a circulação da rickettsia entre carrapatos e mamíferos silvestres, em ecossistema independente do homem. Dentre os animais domésticos, apenas os cães apresentam alguma suscetibilidade à doença. Entretanto, uma vez infectados, apresentam baixas concentrações de rickettsias circulantes, insuficientes para transformá-los em reservatórios. Porém, como animais de estimação, podem contribuir indiretamente para a disseminação da Febre Maculosa, ao transportar carrapatos previamente infectados, que neles se alimentam, para o interior das residências.

O correto diagnóstico da Febre Maculosa é de fundamental importância e deve estar associado ao conhecimento dos antecedentes epidemiológicos e procedência do caso suspeito, pois os sintomas podem ser compatíveis com outras infecções, como leptospirose, meningococcemia, infecção por enterovírus, entre outras doenças infecciosas. O histórico de exposição a carrapatos é extremamente importante. A Embrapa Rondônia iniciou em 2005, juntamente com a Universidade de São Paulo, USP, um levantamento das espécies de Amblyomma que ocorrem no Estado.

(*Pesquisadora da Embrapa Rondônia, Médica Veterinária, DSc. Em Parasitologia Veterinária)

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