História
do Haicai - Edição 527
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Yosa Buson (17161783) |
yuku
haru ya
omotaki biwa no
daki gokoro
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Tradução:
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Vai-se a primavera
O alaúde nos meus braços
já bem mais pesado.
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O kigo desse haicai é yuku haru (a primavera se vai), locução
que anuncia o fim da tão apreciada estação das flores
e a chegada iminente da época do calor.
O alaúde japonês, chamado de biwa, é um instrumento
musical de quatro ou cinco cordas e tem sua origem mais remota no Oriente
Médio. De lá, foi levado para a China, chegando ao Japão
no século VIII. Até antes da Era Meiji, menestréis
ambulantes, frequentemente cegos, sobreviviam recitando passagens da literatura
clássica ao som do alaúde, em especial as histórias
da guerra entre os clãs Taira e Minamoto, passadas no século
XII.
Num mundo já sem flores, a melancolia toma conta dos sentimentos.
Resta cantar as lembranças do passado, mas até o corpo parece
perder suas forças. Buson traduz em sensação física
o fim a primavera.
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História
do Haicai - Edição 525
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Yosa Buson (17161783) |
kindachi
ni
kitsune baketari
yoi no haru
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Tradução:
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Num jovem fidalgo
A raposa se transforma
Ocaso vernal.
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O kigo desse haicai é yoi no haru, ocaso vernal ou de primavera,
indicando o intervalo entre o pôr do sol e a noite completa, ao
fim de um dia de primavera.
Em meio a sentimentos de languidez e sugestão, despertados pelo
lusco-fusco do anoitecer, e talvez ao lume embaçado de uma lua
típica da primavera, Buson caminha por uma estrada pouco frequentada.
A certa altura, cruza com um rapaz de bela figura, provavelmente filho
da nobreza. Neste local tão ermo, a imaginação voa:
não será uma raposa travestida em forma humana?
Raposas são muito importantes no folclore japonês. Capazes
de se metamorfosear em seres humanos, aproximam-se das pessoas para trapaceá-las.
Por outro lado, conta-se que humanos, com grande astúcia, conseguiram
enganar raposas. Nesse haicai, Buson faz uma incursão pelo mundo
da fantasia.
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História
do Haicai - Edição 523
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Yosa Buson (17161783) |
samidare
ya
taiga o mae ni
ie ni-ken
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Tradução:
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Chuva de verão
Às margens do grande rio
apenas duas casas
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O kigo desse haicai é samidare, palavra que significa chuva
do quinto mês. O quinto mês do antigo calendário
lunar, denominado satsuki, corresponde aproximadamente a junho, no verão
japonês, quando tem lugar a época chuvosa. Sendo chuvas que
caem durante muitas semanas, elas contribuem para o aumento do volume
dos rios. Traduzimos a palavra samidare por chuva de verão.
O haicai representa de maneira quase visual o cenário das águas.
Caudaloso e barulhento, o rio cresce em largura e profundidade. Duas casas,
talvez excessivamente próximas de sua margem, parecem seguras por
ora. Entretanto, basta uma chuva mais forte em sua cabeceira para que
a situação mude de um momento para outro.
Comparado aos famosos versos de Bashô, Recolhendo em si /
as águas do Rio Mogami / chuva de verão, o poema de
Buson ganha em objetividade, traçando um retrato vívido
das forças da natureza.
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História
do Haicai - Edição 521
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Yosa Buson (17161783) |
funazushi
ya
hikone ga jô ni
kumo kakaru
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Tradução:
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Funazushi
Sobre o castelo de Hikone
paira uma nuvem
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O kigo desse haicai é funazushi, contração das
palavras buna (peixe da família das carpas, encontrado no Lago
Biwa) e sushi, iguaria típica da região de Ômi, atual
província de Shiga. Sua estação é o verão.
A palavra sushi, antes de dar nome à mais famosa iguaria japonesa,
era originalmente um processo de conservação de alimentos.
Camadas de peixe limpo e salgado eram alternadas com arroz cozido. Assim
guardadas por meses, resultavam num produto fermentado de sabor ácido
e cheiro característico.
No intervalo de uma viagem, enquanto saboreava funazushi em um restaurante,
o autor podia ver, na outra margem do Lago Biwa, o castelo de Hikone.
Pairando sobre ele, uma grande nuvem, em contraste com o céu azul.
O sabor acentuado da comida regional em meio a uma revigorante paisagem
compõe o retrato de um dia de verão para Buson
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História
do Haicai - Edição 519
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Yosa Buson (17161783) |
urei
tsutsu
oka ni noboreba
hana ibara
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Tradução:
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Escalo a colina
cheio de melancolia
Ah, roseira-brava.
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O kigo (termo de estação) desse haicai é hana ibara,
(nome científico Rosa multiflora), arbusto espinhento de flores
brancas e perfumadas, que traduzimos por roseira-brava planta que
floresce no verão.
Tomado por uma tristeza indefinida, o autor escala uma colina. Avista,
então, uma roseira-brava, planta que aprecia muito, por trazer
lembranças da infância na terra natal. Ao mesmo tempo, rememora
um poema do chinês Li Po (701762), do qual transcrevemos partes:
No Terraço da Fênix, onde esta outrora brincara,/ Só
se ouve o murmúrio das águas./ (...) / Roupas e luxos da
dinastia Qin jazem nesta velha colina./ (...)/ Uma nuvem sobre o sol/
esconde a cidade para minha melancolia.
Buson transferiu o sentimento do poema chinês para o mundo do haicai,
onde cada planta do caminho reverbera a melancolia do poeta. A nostalgia
de Li Po é também a de Buson, cuja infância jaz soterrada
pelo tempo.
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História
do Haicai - Edição 517
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Yosa Buson (17161783) |
osoki
hi no
tsumorite tôki
mukashi kana
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Tradução:
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Os dias se alongam
Vão cada vez mais distantes
os tempos de outrora
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O kigo (termo de estação) desse haicai é osoki
hi, dia que termina tarde ou dia alongado. É a percepção
de que, dia após dia, o sol demora cada vez mais para se pôr,
indicando que a primavera chegou.
Às vezes, acontece de sermos invadidos, sem mais nem menos, por
lembranças dos tempos de outrora, passadas há
mais de um ano. Após meses de frio e dias curtos, uma lufada de
vento morno ou a constatação de que a noite demora a cair
disparam memórias de épocas passadas. Só então
percebemos que mais uma primavera chegou e que aquelas memórias
pertencem a um passado que fica cada vez mais distante.
Para o autor, o outrora ainda tinha outros significados.
Podia se referir à Era Heian, um tempo de refinada cultura dominada
pelos nobres e seus palácios. Podia ainda se referir a Bashô,
seu modelo poético. Ambos fazem parte de um romântico passado
que Buson não viveu, mas que lhe despertava real nostalgia
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História
do Haicai - Edição 515
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Yosa Buson (17161783) |
hakubai
ya
sumi kambashiki
kôrokan
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Tradução:
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Ameixeiras brancas
Lá dentro do Korokan
o aroma de tinta.
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O kigo desse haicai é hakubai, ameixeira branca em flor, e sua
estação é a primavera.
Korokan era o nome dado a casas de recepção de visitantes
estrangeiros (chineses e coreanos), situadas nas localidades atuais de
Quioto, Osaka e Fukuoka. Dos séculos VIII até XII, elas
foram verdadeiros centros de intercâmbio cultural, nos quais os
japoneses podiam se informar sobre o que acontecia no resto do mundo.
Mas, no século XVIII de Buson, já não se conhecia
sequer sua localização. Foi apenas em 1987, durante as obras
de reforma de um estádio de beisebol, que foram descobertas as
ruínas do Korokan de Fukuoka.
Em sua fantasia, Buson imaginou as ameixeiras brancas do jardim do Korokan
em plena florada. No lado de dentro, literatos e artistas confraternizavam-se
com os diplomatas estrangeiros. Ao citar o cheiro da tinta negra sumi,
ainda fresca, empregada na caligrafia, o autor dava a medida da vivacidade
e da sofisticação desse sarau de primavera.
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História
do Haicai - Edição 513
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Yosa Buson (17161783) |
yûkaze
ya
mizu aosagi no
hagi o utsu
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Tradução:
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Vento do anoitecer
Aos pés da garça-real
o lago se encrespa.
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O kigo desse haicai é aosagi, garça-real, pássaro
que frequenta margens de lagos e rios da Europa e da Ásia. Maior
que as outras garças, chega a um metro de altura e tem um penacho
característico no alto da cabeça. Sua cor é cinza,
apesar do ao do nome, que quer dizer azul. Sua estação
é o verão.
O haicai ilustra o fim de um dia quente. A proximidade da noite traz
um vento refrescante, que provoca pequenas ondulações no
lago. Da garça imóvel, apenas a parte inferior de suas longas
pernas fica dentro dágua, sendo acariciada pela marola.
Trata-se de mais um exemplo do estilo de Buson, mestre em transportar
cenários de pintura para os versos. A leitura do poema transmite
uma sensação de alívio ao fim de um dia de verão.
No original, são as canelas (hagi) da ave que ficam
dentro dágua. Essa antropomorfização é
um convite para molharmos as pernas junto com o pássaro.
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História
do Haicai - Edição 511
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Yosa Buson (17161783) |
oteuchi
no
meoto narishi o
koromogae
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Tradução:
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Condenado à morte
este casal foi um dia
Mudança de roupas.
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O kigo (termo de estação) desse haicai é koromogae,
mudança de roupas. Indica o ato anual, no início do verão,
de trocar os pesados forros de algodão das vestimentas por seda,
preparando as pessoas para o tempo de calor.
As rigorosas regras da Era Edo tinham seu cumprimento garantido pelo
poder absoluto exercido pelo daimyô (senhor feudal). A palavra oteuchi
significa a aplicação da pena de morte por decisão
dessa autoridade. Nos versos acima, possivelmente, um jovem samurai envolveu-se
em um romance proibido com uma criada. Descobertos, deveriam morrer. Entretanto,
o daimyô acabou cedendo aos pedidos de clemência.
Salvo da morte, mas sem sua espada, o samurai foi expulso, junto com
sua companheira, e o casal passou a viver longe dali. Quanto tempo terá
se passado? O que se sabe é que mais um verão chegou e,
com ele, a mudança de roupas, talvez simbolizando uma vida menos
opressiva, onde haja lugar para o amor.
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Yosa Buson (17161783) |
ochibo
hiroi
hi no ataru kata e
ayumi yuku
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Tradução:
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O respigador
em seu passo se mantém
aonde bate o sol
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O kigo (termo de estação) desse haicai é ochibo,
espiga de arroz abandonada durante a colheita, a ser recolhida posteriormente.
A estação é o outono. Em português, respiga
significa a operação de cata das espigas abandonadas, enquanto
respigador nomeia a pessoa que a pratica.
A respiga fica a cargo de velhos, mulheres e crianças, além
de pessoas desvalidas, que avidamente procuram no chão qualquer
resto da colheita. O haicai descreve uma tarde de final de outono, em
meio à paisagem desolada dos campos colhidos, dominados pelas sombras
das montanhas. À medida que a hora avança, o frio aumenta.
Inconscientemente, um velho respigador desloca-se no sentido contrário
ao das sombras que crescem, mantendo-se aquecido pelos últimos
raios de sol.
Os japoneses gostam de comparar esse haicai à famosa pintura As
respigadoras, do pintor francês Millet (18141875), estabelecendo,
assim, um laço entre Oriente e Ocidente.
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