(Por Denis
Lerrer Rosenfield*)
A homologação
da terra indígena Raposa Serra do Sol, de forma contínua
ou descontínua, coloca um problema de ordem cultural e histórico,
que concerne ao processo de formação de nosso país.
Na verdade, duas abordagens defrontam-se: a da demarcação
contínua, procurando fechar esse território como nação,
e a da demarcação descontínua, mantendo o intercâmbio
entre as populações indígena, mestiça e branca.
A primeira
parte do pressuposto de que a política indigenista deveria consistir
em manter os indígenas separados dos demais brasileiros, como se
fosse possível voltar a um estágio pré-cabralino,
e imunes à atração que o mundo civilizado exerce
sobre os indígenas. Segundo ela, os indígenas são
brasileiros de segunda categoria, que deveriam ser mantidos sob tutela,
como se fossem incapazes de decidir por si mesmos.
Recusam, na
verdade, toda a história de aculturação e de assimilação
das tribos indígenas, em processos que remontam, conforme as tribos,
ao século XVII. É como se a história não devesse
ter existido.
A segunda parte
da posição de que as tribos indígenas em geral e,
em particular, as da Raposa Serra do Sol, estão em processo acentuado
de aculturação e de assimilação. Adotaram
as religiões católica, protestante e evangélica,
num exemplo claro de transformação de suas religiosidades
originárias. A própria advogada de origem indígena
presente no anterior julgamento do Supremo mostra o êxito dessa
aculturação. A economia da região é também
ela o reflexo dessa integração.
Processos de
aculturação decorrem de vários fatores, desde os
que podem, aos nossos olhos, parecer anódinos, como vestimentas,
até modificações religiosas, que alteram profundamente
o modo mediante o qual um povo se representa e se sente, transformando
profundamente a idéia que tem de si. A introdução
de novas técnicas e tecnologias, como o machado de ferro em tempos
mais remotos, ou automóveis e celulares hoje, tem a propriedade
de transformar as relações vigentes em uma determinada tribo.
Muda, assim,
o seu comportamento com outros agrupamentos humanos, como sertanejos,
caboclos, mestiços e brancos. Tais elementos modificam a forma
não apenas de trabalhar, mas de pensar, sentir e representar.
Outros elementos
igualmente poderosos são a indumentária, o dinheiro, a língua,
a escola e a religião, que solapam os fundamentos mesmo dessas
culturas indígenas. Observe-se que se trata da introdução
de fatores que são inevitáveis em toda relação
que se estabeleça com a moderna civilização brasileira,
não podendo, na verdade, ser barrados por uma política indigenista.
O que, sim, pode ela fazer consiste em minimizar os seus efeitos do ponto
de vista social, o que significa dizer do ponto de vista de uma melhor
e mais humana integração dessas tribos à sociedade
brasileira.
Vários
pensadores e etnólogos dedicaram-se a essa questão, com
rigor científico e uma visão de integração
dos indígenas à sociedade brasileira. Eram etnólogos
com profunda visão humanista, e não ideólogos, que
advogavam por um suposto retorno a uma situação idílica
e falsa de um estado de natureza bom e harmônico. Seguiam a ciência,
e não a religião, como ocorre hoje com a política
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a orientação
correlata da Funai.
Nesse sentido,
uma política indigenista deveria controlar os efeitos dos processos
de aculturação e integração indígenas,
fazendo com que eles ocorram gradativamente, assegurando políticas
sociais e mesmo econômicas, sabendo, de antemão, que esse
processo se apresenta como irreversível. O índio passa a
depender de elementos e fatores estranhos como os produtos do mundo
civilizado , sem ter, muitas vezes, os meios próprios de
compreender como esses são feitos e podem ser adquiridos. Em todo
caso, o fascínio é irreversível e se coloca a questão
de sua aquisição por intermédio do trabalho e do
comércio, e não de políticas assistencialistas, que
só desmerecem e desonram os que são delas beneficiários.
Isso significa
dizer que os problemas daí decorrentes são apenas parcialmente
fundiários e dizem respeito a um conjunto de políticas sociais
e trabalhistas, que poderiam ser objeto de uma intervenção
estatal, que não se reduzisse a tentar criar condições
primitivas de existência que já foram abolidas e às
quais todo retorno é culturalmente impossível. A demanda,
no caso, é por postos de saúde, com enfermeiras, médicos
e medicamentos, e não pela volta do pajé.
A demanda é
por uma educação que, resgatando as tradições
indígenas, ofereça a eles a possibilidade de uma boa integração
ao mundo civilizado. A demanda não é por ausência
de trabalho, mas por condições dignas de trabalho, não
tornando o indígena um novo miserável urbano.
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