Mistério
e encantamento
O fascínio enigmático
da literatura de Haruki Murakami as primeiras obras
(Por:
Neide Hissae Nagae*)
Histórico
do autor
Haruki Murakami nasceu em 12 de janeiro de
1949, na cidade de Quioto, e mudou-se no primeiro ano
de vida para Ashiya, cidade próxima a Kobe, segundo
maior porto do Japão. Graduou-se em Literatura
Clássica pela Universidade de Waseda, em Tóquio,
e foi dono de um jazz bar entre 1974 e 1981. Amante de
viagens e de culturas estrangeiras, ele passou três
anos entre Grécia e Itália, lecionou na
Universidade de Princeton, EUA, e traduziu obras de F.Scott
Fitzegerald, Raymon Carver, John Irving, Paul Theroux
e de outros autores americanos.
Decidiu
seguir a carreira literária em 1974, quando começou
a escrever Kaze no uta o kike (Escute a canção
do vento, 1979), que lhe rendeu o importante prêmio
japonês Gunzo de literatura para estreantes. A segunda
obra foi Senkyuhyakunanajusan nen no pinboru (Fliperama
de 1973,1980); e a terceira, Hitsuji o meguru boken (Caçando
Carneiros, 1982), laureada com o Prêmio Noma para
novatos e primeira obra do autor publicada no Brasil em
2001.
Apesar
de sua postura de não ter vínculo com nenhuma
tendência literária e de permanecer alheio
às críticas, muitos leitores identificaram-se
com a sua escrita e suas obras Noruee no Mori (Norwegian
Wood, 1987) e Dance, Dance, Dance (1988) acabaram virando
best seller e o autor continua, até hoje, com intensa
produção literária.
Traduzidas
para diversos idiomas e publicadas em aproximadamente
40 países, suas obras têm sido alvo de comentaristas
e de pesquisadores do Japão e do mundo.
Em
março de 2006, promovida pela sede da Fundação
Japão, foram realizados o simpósio e workshop:
Haruki o meguru boken, sekaiwa Murakami Haruki o do yomuka
(Às voltas com Haruki como o mundo lê
Haruki Murakami), nos dias 25 e 26 em Tóquio e,
no dia 29, nas cidades de Kobe e Sapporo, dos quais participaram
tradutores de 17 países. O Brasil esteve representado
pelo editor Angel Bojadsen, da Estação Liberdade,
que participou da mesa de debates sobre as capas dos livros
traduzidos e sobre as questões da globalização.
Além da Conferência proferida pelo americano
Richard Powers, houve uma seção em que os
tradutores explanaram suas leituras sobre Haruki e os
encantos de sua obra. Haruki Murakami e o Cinema foi outro
tema abordado e houve um workshop com experiências
de tradução.
Temáticas
No
Ocidente, Caçando Carneiros é conhecida
como a terceira obra da chamada Trilogia do Rato
|
Dance,
Dance, Dance é um dos best sellers do autor. A obra
contém personagens comuns em outros livros de Murakami
|
Norwegian
Wood foi publicada em 1987 e é uma das obras mais
comentadas e estudadas por pesquisadores
|
As
obras de Haruki Murakami são envolventes. Há
nelas uma magia que envolve o leitor pelos meandros de
sua escrita charadista, de personagens emblemáticas
e fenômenos estranhos, conduzidos por fundos musicais
e intertextuais no dia-a-dia do japonês, mas não
aquele estigmatizado por quimonos e pratos típicos,
num ambiente criado por salas forradas com tatames circunscritos
a paisagens pitorescas, que está entre os templos
e santuários do Japão. Trata-se de um mundo
moderno, capitalista e consumista, onde as pessoas são
solitárias; e as famílias, fragmentadas.
As atividades rotineiras ocupam grande parte das descrições
desse mundo semelhante à fase em que o adolescente
valoriza a amizade de terceiros, em meio a relações
amorosas sem compromissos e restritas a um pequeno grupo,
no qual as relações são superficiais
e fugazes; passeia-se, bebe-se e come-se ao som de músicas
de fundo dos anos 60 e 70.
Procurar
por alguém ou por algo que desapareceu é
o fio condutor dessas obras e também o que liga
umas às outras. Boku, o narrador-protagonista,
parece viver desligado de tudo, mas lança-se às
peripécias detetivescas e depara-se com seres estranhos,
fatos inusitados e fenômenos inexplicáveis
que fazem o leitor mergulhar no inusitado universo harukiano:
uma rede de informações alimentada por uma
energia complexa e infinita de conexões ignoradas,
à qual tudo e todos estão conectados, com
maior ou menor intensidade, por vezes com ruídos.
Na vida regida por tais conexões, o importante
é buscar, o estranhamento e a perda são
recorrentes, e o incomum, o inusitado e até a morte
fazem parte do imaginário desse inexplicável
universo humano que anda às soltas entre pessoas
cegadas pelas convenções e pelo sistema.
É
justamente o sentido da visão que, nas primeiras
obras, é preterido em favor da audição
como mecanismo sensível mais seguro. O vento sussurra
ao ouvido do eu que o Sol está próximo
do fim, a presença da música é marcante
e as personagens principais associam-se de algum modo
ao som. Kiki leva no nome, escrito na grafia utilizada
para estrangeirismos, ,a
possibilidade de sobreposição de sentidos
que vai desde ouvir ,
escutar ,
perguntar ,
ser prestativo ,
ser eficiente ,
até perigo .
Também na profissão, ela acumula o exercício
de modelo de orelha, de call girl, garota de programa
que atende com hora marcada e de revisora de textos, função
que passeia entre essas acepções. A garota
era também namorada de boku, que desaparece
em Caçando Carneiros e reaparece em Dance, Dance,
Dance, primeiro para atrair o boku para o
Dolphin Hotel, reconstruído dos escombros do decadente
e antigo Hotel Golfinho, em Hokkaido, norte do Japão,
e segundo, no Havaí, como espectro que lhe fornece
pistas sobre o homicídio dela.
Intertextualidade
Nezumi, amigo e companheiro de trabalho de boku,
aparece grafado com o ideograma do animal rato
que, de imediato, é associado ao signo do zodíaco
chinês; ne ,
que, por sua vez, faz lembrar neiro ,
cujo significado é som, melodia, música.
Personagem significativa das três primeiras obras
de Haruki que ficaram conhecidas no Ocidente como Trilogia
do Rato, ele é um escritor desgostoso da vida,
filho de uma família abastada, mas fragmentada.
Desaparece na segunda obra, Fliperama, de 1973, e suicida-se
na terceira, Caçando Carneiros. Apontado pelos
estudiosos como alter-ego do narrador-protagonista, a
morte do amigo representa o amadurecimento de boku,
mas tal fato se torna efetivo em Dance, Dance, Dance,
em que o narrador-protagonista sai de seu pequeno mundo
a partir do momento em que vai ao Hotel Dolphin, encontra
Yuki, a menina sensitiva que o ajuda a desvendar o desaparecimento
de Kiki.
Rato
e Carneiro compõem um jogo de substituição
que acompanha e, ao mesmo tempo, não a seqüência
do zodíaco chinês. Nezumi ,
Rato ,
como já se viu, é o primeiro signo e assim
o foi pela agilidade e esperteza com as quais superou
a lentidão do ushi ,
boi ,
o segundo do zodíaco. Haruki é do signo
de boi, mas, pelo que revela o dicionário sobre
a composição de hitsuji ,
carneiro ,
o oitavo signo, temos um autor boi disfarçado
de carneiro. O ditado de Mêncio justifica o ato
de trocar boi por carneiro, e a expressão Hitsuji
no ayumi, caminhar do carneiro em direção
ao matadouro, indica a aproximação
gradativa da morte, associada à idéia do
Sol que vai perdendo a energia até apagar-se. Tal
como o zodíaco chinês, Rato é a primeira
personagem da obra de Haruki, mas logo é substituído
pelo Boi disfarçado de Carneiro. Os três
signos apresentam outras curiosidades quanto ao ponto
cardeal e ao horário que representam e há
uma semelhança notável entre os sentidos
destes elementos chineses com o latim vulgar carnariu,
que significa gaveta ou urna onde se depositam cadáveres
nos cemitérios. Carneiro, por sua vez, desdobra-se
para o zodíaco ocidental conhecido como Áries,
a primeira constelação. O próprio
Murakami, sem dizer os motivos, declarou em 1999, que
transformou o boi em carneiro.
O
carneiro com a marca da estrela e que representa o espírito
de origem mongol, conquistadora, possui o poder misterioso
de incorporar nas pessoas e lhes conferir poderes surpreendentes
de sucesso em Caçando Carneiros. Ao perder a pureza
de espírito, o dr. Carneiro incorporou esse animal
quando esteve na China e levou-o consigo ao Japão
na época em que desenvolveu a ovinocultura no norte
do país. Rato, com sua fraqueza e covardia, recupera
a dignidade deixando-se dominar pelo carneiro e tirando
a própria vida para recusar a sucessão do
poder dominador do outro e reaparece como Homem-Carneiro
em Dance, Dance, Dance, que faz as conexões necessárias
para que boku encontre a felicidade junto
a Yumiyoshi, que o aguarda no Dolphin Hotel.
Seguindo
a mesma linha das conexões e dos sons, nota-se
uma preferência pela palavra obsoleta do vernáculo
Golfinho iruka ,
ou ,
que é um animal que emite ondas sonoras e cujo
nome oculta os sentidos reproduzidos pelas expressões
homófonas de questionamento
é preciso? Está
aí?, que foi substituída por Dolphin,
condizente com a estrutura e a instalação
mais moderna e atual, de prestígio. Diz-se que
o golfinho, na arte funerária estrusca, conduziria
as almas à Ilha dos Bem-aventurados. É também
uma constelação e há uma possível
a associação com Delfos, a cidade grega
do oráculo.
Yumiyoshi,
a garota que garante a manutenção do eu
no mundo real, é de Okinawa, extremo sul do Japão,
e o narrador-protagonista encontra-a no Hotel Dolphin,
em Hokkaido, extremo norte, ao seguir o chamado de Kiki
e encontrar o Homem-Carneiro. As duas províncias
formam um arco que é o próprio mapa do Japão
e, por isso, nos sonhos de boku, o Hotel Golfinho
mais parece uma ponte.
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