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Arte em Letras
Matéria publicada no Zashi edição 9 - Maio de 2008

Mistério e encantamento
O fascínio enigmático da literatura de Haruki Murakami – as primeiras obras

(Por: Neide Hissae Nagae*)

Histórico do autor
Haruki Murakami nasceu em 12 de janeiro de 1949, na cidade de Quioto, e mudou-se no primeiro ano de vida para Ashiya, cidade próxima a Kobe, segundo maior porto do Japão. Graduou-se em Literatura Clássica pela Universidade de Waseda, em Tóquio, e foi dono de um jazz bar entre 1974 e 1981. Amante de viagens e de culturas estrangeiras, ele passou três anos entre Grécia e Itália, lecionou na Universidade de Princeton, EUA, e traduziu obras de F.Scott Fitzegerald, Raymon Carver, John Irving, Paul Theroux e de outros autores americanos.

Decidiu seguir a carreira literária em 1974, quando começou a escrever Kaze no uta o kike (Escute a canção do vento, 1979), que lhe rendeu o importante prêmio japonês Gunzo de literatura para estreantes. A segunda obra foi Senkyuhyakunanajusan nen no pinboru (Fliperama de 1973,1980); e a terceira, Hitsuji o meguru boken (Caçando Carneiros, 1982), laureada com o Prêmio Noma para novatos e primeira obra do autor publicada no Brasil em 2001.

Apesar de sua postura de não ter vínculo com nenhuma tendência literária e de permanecer alheio às críticas, muitos leitores identificaram-se com a sua escrita e suas obras Noruee no Mori (Norwegian Wood, 1987) e Dance, Dance, Dance (1988) acabaram virando best seller e o autor continua, até hoje, com intensa produção literária.

Traduzidas para diversos idiomas e publicadas em aproximadamente 40 países, suas obras têm sido alvo de comentaristas e de pesquisadores do Japão e do mundo.

Em março de 2006, promovida pela sede da Fundação Japão, foram realizados o simpósio e workshop: Haruki o meguru boken, sekaiwa Murakami Haruki o do yomuka (Às voltas com Haruki – como o mundo lê Haruki Murakami), nos dias 25 e 26 em Tóquio e, no dia 29, nas cidades de Kobe e Sapporo, dos quais participaram tradutores de 17 países. O Brasil esteve representado pelo editor Angel Bojadsen, da Estação Liberdade, que participou da mesa de debates sobre as capas dos livros traduzidos e sobre as questões da globalização. Além da Conferência proferida pelo americano Richard Powers, houve uma seção em que os tradutores explanaram suas leituras sobre Haruki e os encantos de sua obra. Haruki Murakami e o Cinema foi outro tema abordado e houve um workshop com experiências de tradução.

Temáticas


No Ocidente, Caçando Carneiros é conhecida como a terceira obra da chamada Trilogia do Rato

Dance, Dance, Dance é um dos best sellers do autor. A obra contém personagens comuns em outros livros de Murakami

Norwegian Wood foi publicada em 1987 e é uma das obras mais comentadas e estudadas por pesquisadores

As obras de Haruki Murakami são envolventes. Há nelas uma magia que envolve o leitor pelos meandros de sua escrita charadista, de personagens emblemáticas e fenômenos estranhos, conduzidos por fundos musicais e intertextuais no dia-a-dia do japonês, mas não aquele estigmatizado por quimonos e pratos típicos, num ambiente criado por salas forradas com tatames circunscritos a paisagens pitorescas, que está entre os templos e santuários do Japão. Trata-se de um mundo moderno, capitalista e consumista, onde as pessoas são solitárias; e as famílias, fragmentadas. As atividades rotineiras ocupam grande parte das descrições desse mundo semelhante à fase em que o adolescente valoriza a amizade de terceiros, em meio a relações amorosas sem compromissos e restritas a um pequeno grupo, no qual as relações são superficiais e fugazes; passeia-se, bebe-se e come-se ao som de músicas de fundo dos anos 60 e 70.

Procurar por alguém ou por algo que desapareceu é o fio condutor dessas obras e também o que liga umas às outras. “Boku”, o narrador-protagonista, parece viver desligado de tudo, mas lança-se às peripécias detetivescas e depara-se com seres estranhos, fatos inusitados e fenômenos inexplicáveis que fazem o leitor mergulhar no inusitado universo harukiano: uma rede de informações alimentada por uma energia complexa e infinita de conexões ignoradas, à qual tudo e todos estão conectados, com maior ou menor intensidade, por vezes com ruídos. Na vida regida por tais conexões, o importante é buscar, o estranhamento e a perda são recorrentes, e o incomum, o inusitado e até a morte fazem parte do imaginário desse inexplicável universo humano que anda às soltas entre pessoas cegadas pelas convenções e pelo sistema.

É justamente o sentido da visão que, nas primeiras obras, é preterido em favor da audição como mecanismo sensível mais seguro. O vento sussurra ao ouvido do “eu” que o Sol está próximo do fim, a presença da música é marcante e as personagens principais associam-se de algum modo ao som. Kiki leva no nome, escrito na grafia utilizada para estrangeirismos, ,a possibilidade de sobreposição de sentidos que vai desde ouvir , escutar , perguntar , ser prestativo , ser eficiente , até perigo . Também na profissão, ela acumula o exercício de modelo de orelha, de call girl, garota de programa que atende com hora marcada e de revisora de textos, função que passeia entre essas acepções. A garota era também namorada de “boku”, que desaparece em Caçando Carneiros e reaparece em Dance, Dance, Dance, primeiro para atrair o “boku” para o Dolphin Hotel, reconstruído dos escombros do decadente e antigo Hotel Golfinho, em Hokkaido, norte do Japão, e segundo, no Havaí, como espectro que lhe fornece pistas sobre o homicídio dela.

Intertextualidade

Nezumi, amigo e companheiro de trabalho de “boku”, aparece grafado com o ideograma do animal rato que, de imediato, é associado ao signo do zodíaco chinês; “ne” , que, por sua vez, faz lembrar “neiro” , cujo significado é “som, melodia, música”. Personagem significativa das três primeiras obras de Haruki que ficaram conhecidas no Ocidente como Trilogia do Rato, ele é um escritor desgostoso da vida, filho de uma família abastada, mas fragmentada. Desaparece na segunda obra, Fliperama, de 1973, e suicida-se na terceira, Caçando Carneiros. Apontado pelos estudiosos como alter-ego do narrador-protagonista, a morte do amigo representa o amadurecimento de “boku”, mas tal fato se torna efetivo em Dance, Dance, Dance, em que o narrador-protagonista sai de seu pequeno mundo a partir do momento em que vai ao Hotel Dolphin, encontra Yuki, a menina sensitiva que o ajuda a desvendar o desaparecimento de Kiki.

Rato e Carneiro compõem um jogo de substituição que acompanha e, ao mesmo tempo, não a seqüência do zodíaco chinês. Nezumi , Rato , como já se viu, é o primeiro signo e assim o foi pela agilidade e esperteza com as quais superou a lentidão do ushi , boi , o segundo do zodíaco. Haruki é do signo de boi, mas, pelo que revela o dicionário sobre a composição de hitsuji , carneiro , o oitavo signo, temos um “autor boi” disfarçado de carneiro. O ditado de Mêncio justifica o ato de trocar boi por carneiro, e a expressão “Hitsuji no ayumi”, “caminhar do carneiro em direção ao matadouro”, indica a aproximação gradativa da morte, associada à idéia do Sol que vai perdendo a energia até apagar-se. Tal como o zodíaco chinês, Rato é a primeira personagem da obra de Haruki, mas logo é substituído pelo Boi disfarçado de Carneiro. Os três signos apresentam outras curiosidades quanto ao ponto cardeal e ao horário que representam e há uma semelhança notável entre os sentidos destes elementos chineses com o latim vulgar carnariu, que significa gaveta ou urna onde se depositam cadáveres nos cemitérios. Carneiro, por sua vez, desdobra-se para o zodíaco ocidental conhecido como Áries, a primeira constelação. O próprio Murakami, sem dizer os motivos, declarou em 1999, que transformou o boi em carneiro.

O carneiro com a marca da estrela e que representa o espírito de origem mongol, conquistadora, possui o poder misterioso de incorporar nas pessoas e lhes conferir poderes surpreendentes de sucesso em Caçando Carneiros. Ao perder a pureza de espírito, o dr. Carneiro incorporou esse animal quando esteve na China e levou-o consigo ao Japão na época em que desenvolveu a ovinocultura no norte do país. Rato, com sua fraqueza e covardia, recupera a dignidade deixando-se dominar pelo carneiro e tirando a própria vida para recusar a sucessão do poder dominador do outro e reaparece como Homem-Carneiro em Dance, Dance, Dance, que faz as conexões necessárias para que “boku” encontre a felicidade junto a Yumiyoshi, que o aguarda no Dolphin Hotel.

Seguindo a mesma linha das conexões e dos sons, nota-se uma preferência pela palavra obsoleta do vernáculo Golfinho iruka , ou , que é um animal que emite ondas sonoras e cujo nome oculta os sentidos reproduzidos pelas expressões homófonas de questionamento “é preciso?” “Está aí?”, que foi substituída por Dolphin, condizente com a estrutura e a instalação mais moderna e atual, de prestígio. Diz-se que o golfinho, na arte funerária estrusca, conduziria as almas à Ilha dos Bem-aventurados. É também uma constelação e há uma possível a associação com Delfos, a cidade grega do oráculo.

Yumiyoshi, a garota que garante a manutenção do “eu” no mundo real, é de Okinawa, extremo sul do Japão, e o narrador-protagonista encontra-a no Hotel Dolphin, em Hokkaido, extremo norte, ao seguir o chamado de Kiki e encontrar o Homem-Carneiro. As duas províncias formam um arco que é o próprio mapa do Japão e, por isso, nos sonhos de “boku”, o Hotel Golfinho mais parece uma ponte.


Outras conexões

Os mistérios que pairam na obra de Haruki são criados basicamente pelos arranjos lingüísticos, ajudados pelo imaginário fundamentado na crença em elos com pessoas que já deixaram este mundo material visível e permanecem vivas em forma de energia, representadas pela rede de conexões elétricas e nos repositórios culturais do continente chinês, uma mistura bem-feita do moderno e do antigo, das inovações e das tradições, num jogo bem humorado de linguagem oral e escrita, japonesa e românica, tal como o nome do pai ausente de Yuki em Dance, Dance, Dance: Hiraku Makimura (desbravar/ vila/ pasto) – escritor famoso com uma vida luxuosa e de luxúrias que já passou de sua melhor fase, namora um estudante gay e vive tentando comprar tudo e todos –, que é um anagrama de Haruki Murakami (vila/ acima/ primavera/ árvore) não visualizável quando escrito pelos ideogramas, mas perceptível aos ouvidos aguçados.


*Neide Hissae Nagae é professora doutora em Literatura Japonesa e docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

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