Quimono:
a mensagem
codificada pelo corpo
Majestoso
traje considerado tesouro cultural japonês oculta,
ao longo de sua história, influências sociais,
políticas e comerciais
(Por
Equipe Zashi | Colaboração: Andreano Takahashi
e Suzana Sakai)
Richard
Dawkins é um dos grandes intelectuais da atualidade.
É dele a teoria evolucionista do Gene egoísta,
a qual prega que, na disputa entre os gêneros, a batalha
entre os sexos sempre fará com que um tente submeter
o outro, explorá-lo. Nesse contexto, o gene egoísta
masculino representou, no decurso da história da
sociedade japonesa, a submissão da mulher e o controle
de seu comportamento, a começar pelos trajes ao longo
das eras. Isso foi o que Cecília Noriko Saito, pesquisadora
do Centro de Estudos Orientais da PUC-SP eda Escola Modelo
de Língua Japonesa de Goiás, descobriu ao
fazer sua pesquisa para a produção do artigo
científico O kimono e a gestualidade no corpo
feminino japonês, publicado na revista eletrônica
YUKEI eZine, do CEO-PUC. Dawkins é um antropólogo
evolucionista queniano e, apesar da aparente distância
que a teoria desenvolvida por ele possa representar à
primeira vista para a história do quimono, sua idéia
parece coincidir bastante sobre o processo gradativo de
transformação dessa tradicional vestimenta
japonesa e de seus desdobramentos sociais.
Pelas
eras da história do arquipélago
Como
em qualquer outra sociedade, há regras no Japão
sobre tipos e cores de roupas para se vestir em várias
ocasiões. As regras sobre o quimono são mais
importantes no Japão do que as regras sobre as roupas
no Ocidente. O quimono reflete um tempo passado no qual
códigos sociais referentes a status eram importantes.
Também a distinção entre situações
formais e informais era levada bastante a sério,
escreve Noriko Kamachi em Culture and customs of Japan (inédito
em português). Segundo a autora, hoje, raramente se
vê quimonos nas ruas, mas isso não significa
que os japoneses não apreciem o traje. Ao contrário,
eles [os japoneses] acreditam que essa é a roupa
mais agradável e, esteticamente, a que melhor lhes
cai, rebate.

Regras para o quimono no Japão são
mais importantes do que as regras sobre as roupas
no Ocidente, afirma a pesquisadora Noriko Kamachi
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A realidade
descrita por Noriko em seu livro pode ser encarada como
resultado de um percurso histórico que, inevitavelmente,
culminaria com os quimonos guardados no armário e
retirados, hoje, apenas em cerimônias especiais. O
gestual japonês do passado, estudado por Cecília
Saito, comprovadamente já adquiriu novas características
nos dias atuais, o que não suportaria a vida e as
tarefas contemporâneas da mesma forma que antes, ainda
que as indústrias modernas do quimono, com linhas
pré-combinadas e prontas para vestir trabalhem em
sentido oposto. Seria uma resposta à necessidade
de sobrevivência do quimono no século XXI,
tentando fazer os ajustamentos a um corpo miscigenado, que
não mais se adapta ao desconforto da vestimenta antiga?,
questiona Cecília em seu artigo.
Pesquisas
históricas documentam que, assim como uma série
de outros aspectos culturais adaptados e incorporados às
tradições sociais japonesas, o quimono também
teve influências chinesas ao longo de sua trajetória.
O contato estabelecido em eras antigas com as dinastias
da China proporcionou trocas culturais que abarcaram também
o ato de vestir. Dessa forma, têm-se no guarda-roupa
chinês peças precursoras do que hoje se conhece
como quimono.
Ao longo
das eras japonesas, no entanto, o traje foi assumindo aspectos
políticos e comerciais, com reflexos sobretudo nas
relações sociais.
Poder
sobre o quimono
Grosso
modo, pode-se considerar que cada mudança de poder
da história do Japão iniciou um novo capítulo
na evolução do quimono. Isso porque a vestimenta
refletiu gostos e preferências de quem ditava as regras,
independentemente da era em questão. E as mulheres,
ao longo de sua luta por independência social, foram
grandes alvos dessas determinações. Assim,
parece estabelecer-se uma relação de submissão
contínua: a política influindo sobre o quimono,
que, por sua vez, atuou como elemento controlador do comportamento
feminino. Cecília Saito dá um exemplo: Do
período Muromachi até o Momoyama, ocorre a
replicação da extravagância e do brilho
nos desenhos da moda, particularmente, devido ao gosto do
líder militar Oda Nobunaga.
O desenho
da roupa e os novos traços agregados por ela durante
esse processo histórico foram determinantes na limitação
das vontades e dos anseios femininos e mais uma vez
o gene egoísta masculino se fez presente. A estudiosa
Yasuko Tohyama faz uma leitura crítica do quimono
e não poupa detalhes para argumentar a respeito dos
aspectos restritivos da roupa. Segundo ela, o quimono influencia
e regula o comportamento não-verbal japonês,
especialmente para a mulher; além disso, a vestimenta
é inconveniente para o comportamento ativo de quem
a veste.
Por trás da beleza
O corte
é diferente, exótico. O tecido tem belas cores
e padronagens cuidadosamente escolhidas. Acompanhado de
seus acessórios, o quimono compõe um todo
majestoso, com traços incrivelmente étnicos:
basta bater os olhos para associar a imagem
da roupa à mulher japonesa e aos costumes do arquipélago.
Contudo, cores e cortes ocultam uma leitura social de amarras
preocupantes.

Em desfiles e eventos específicos de moda, o quimono
ganha destaque pelo fascínio que provoca, principalmente
no povo ocidental
O
padrão de comportamento da mulher que usa o quimono
estabelece que não se deve abrir muito a boca, pois
isso significa a quebra do silêncio que envolve o
traje, observa Cecília Saito. Além de
poder representar, a um exame superficial, detalhes como
hierarquia social, ocasião e até mesmo o estado
civil de quem o usa, o quimono conta com características
limitadoras, possivelmente estas as responsáveis
por séculos de submissão feminina ao sistema.
Estes padrões de comportamento teriam reprimido
o corpo feminino pelos seus códigos próprios,
ou pela submissão às leis, poderiam ter internalizado
o tempo presente, reflete Cecília.
O corte
dos braços não permitem movimentos mais amplos;
os sapatos apresentam capacidades reduzidas de ação
e o obi (faixa), abre-se com facilidade. As pernas
também podem facilmente aparecer sobre a cauda do
quimono, completa Tohyama. Está, assim, montado
um quadro de intencionalidades dominantes sobre usuárias
dominadas, rompido com a abertura ao Ocidente e a absorção
de costumes que, gradativamente, foram soltando
as amarras do quimono. A abertura comercial instigou na
mulher japonesa o desejo de consumo e também o de
vestir roupas mais confortáveis, menos pesadas. Traços
mais libertadores incorporaram-se ao vestir da japonesa,
culminando com a moda contemporânea de estilos coloridos
e até exagerados. São corpos que não
desejam a diferença de gêneros, que respondem
ao processo de evolução operado pela seleção
natural, conclui Cecília.
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