Do
papel de embrulho ao Impressionismo
Fenômeno
cultural da história da arte, o Japonismo deu novo
fôlego às produções européias
no século XIX
e inspirou o surgimento de uma das vanguardas mais importantes
do Velho Mundo
(Por
Suzana Sakai | Colaboração: Erika Horigoshi)
Releitura
computadorizada mantém viva a mais
famosa gravura do gênio Katsushika Hokusai
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As
temáticas tipicamente japonesas trouxeram novo
fôlego em um momento no qual artistas europeus
se encontravam em estagnação
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A
arte japonesa, decadente em seu próprio país,
ganha força novamente entre artistas impressionistas
franceses, relatou nada mais nada menos que Vincent
Van Gogh, em carta ao seu irmão. O pintor referia-se
às gravuras no estilo ukiyo-e, que eram produzidas
em escalas comerciais no Japão e chegavam ao Ocidente
como papel de embrulho. Esse encontro entre a arte
do Oriente e do Ocidente sacudiu os, até então,
estagnados artistas europeus. No momento em que o
comodoro Perry forçou o governo japonês a abrir
seus portos para o comércio exterior, abriu, com
eles, a comporta de uma represa cultural até então
pouco conhecida. Estava represada dentro do Japão
uma cultura rica e pura de influências, dado o seu
longo isolamento. Os de dentro da represa estavam sedentos
de conhecer o resto do mundo, e o resto do mundo procurava
alguma coisa nova que pudesse sacudir o seu academicismo.
O encontro dessas duas culturas nesse momento foi um casamento
perfeito, explica a professora e jornalista Mara Rúbia
Arakaki. Já o escritor Siegried Wichmann, descreve
esse choque entre o Ocidente e o Oriente com um conceito
ainda mais forte, no livro Japonisme The Japanese
Influence on Western Art Since 1858, inédito em português:
O impacto do Japão na arte ocidental foi imediato
e quase um cataclisma assim como a influência
do Ocidente na vida japonesa. Após a abertura dos
portos japoneses, pelo comandante Perry, as tradições
nipônicas da cerâmica, o trabalho com o metal
e a arquitetura, assim como as estampas e as pinturas, alcançaram
o Ocidente e lhe eletrizaram com novas idéias de
composição, cor e design.
A
influência do ukiyo-e
Com a abertura comercial, os europeus tiveram acesso a diversos
objetos japoneses, mas as estampas ukiyo-e podem ser apontadas
como a grande sensação daquele momento. O
sucesso chega a ser inexplicável. Imagine artistas
do porte de Van Gogh ou Felix Bracquemond preocupados muito
mais com as embalagens recém-chegadas do arquipélago,
do que as encomendas em si.
O
mais curioso disso tudo é que os produtos japoneses
já começavam a se destacar nos Estados Unidos,
mas foi nas mãos dos artistas europeus, encantados
com o papel de embrulho, que a arte do século XIX
ganhou um novo sentido. O interesse crescente pelas
estampas ukiyo-e, tão fundamental para os artistas,
fez-se por um caminho independente das grandes manifestações
oficiais. Foram os artistas europeus os primeiros a perceberem
o valor das estampas, e alguns testemunhos permitem reconstituir
as datas e circunstâncias. O pintor Bracquemont, em
1856, descobriu um volume das célebres Manga de Hokusai
com um comerciante parisiense servindo de papel de embalagem
e proteção para porcelanas despachadas por
franceses estabelecidos no Japão. Claude Monet entrou
em contato com o ukiyo-e de modo semelhante, em sua cidade
natal, no porto de Havre, por onde chegavam as mercadorias
do Japão, alega o professor Luiz Carlos Dantas,
em palestra sobre o assunto realizada na Fundação
Japão. Van Gogh, ao travar contato com o Impressionismo,
descobriu o gosto pela arte nipônica. Com a ajuda
de seu irmão, Theo, o artista adquiriu cerca de 400
gravuras japonesas, graças aos seus baixíssimos
preços. Algumas obras com essa influência são:
Oiran (1887), As Árvores (1886-1888) e Japonaiserie:
Chuva na ponte (1887); as quais tiveram como fonte de inspiração
as xilogravuras japonesas de Utagawa Hiroshigue, Eizan,
entre outros, completa a professora da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) Monica Okamoto.
Grandes
exposições
Apesar do encanto dos artistas europeus, logo no primeiro
contato com as peças do arquipélago, o termo
Japonismo só se tornaria conhecido com as grandes
exposições. Um bom exemplo disso foi a Segunda
Exposição Internacional, que ocorreu em Londres,
em 1862, e foi responsável pela projeção
e pelo reconhecimento dos produtos nipônicos no Ocidente.
As peças japonesas dessa mostra pertenciam,
em sua maioria, ao primeiro-ministro britânico da
época, sir Rutherford Alcock, que colecionava muitos
desses objetos artísticos. O Japão, mesmo
não participando oficialmente da exposição,
atraiu inúmeros admiradores de seus objetos de laca,
porcelanas e maki-e [pinturas em rolo]. O acontecimento
foi a pedra-de-toque que tornou popular, entre os europeus,
a tão longínqua arte japonesa, afirma
Monica. A partir dessa data, o pintor James Whistler,
de origem americana, passou a utilizar, em seus quadros,
elementos decorativos nipônicos, biombos, leques,
quimonos e sedas. Esse artista importante, que viajava com
freqüência entre Londres e Paris, foi elemento
essencial de difusão do Japonismo na França,
ocorrida com alguns anos de atraso com relação
à Inglaterra, comenta Dantas.
Apesar
do sucesso, o Japão só participaria oficialmente
de uma exposição internacional em 1867 em
Paris. Especialistas franceses foram enviados ao Japão
para trabalhar na seleção dos objetos da mostra,
juntamente com as autoridades japonesas. Inúmeros
artigos foram selecionados e enviados a Paris, dentre eles
5,6 mil pinturas de ukiyo-e e 60 mil peças de cerâmica,
conta Monica.
Em
1867, as peças nipônicas fizeram um sucesso
imenso, mas, na exposição de 1878, atingiram
seu apogeu. Nesse ano, foram expostas peças
religiosas trazidas por Émile Guimet, que formariam
o primeiro núcleo do que seria mais tarde o Museu
de Artes Orientais da França. Na exposição
de 1889, a apresentação metódica de
objetos, livros e gravuras alçou a arte japonesa,
considerada até então essencialmente decorativa,
ao nível da grande arte, disse Dantas.
Rumo
ao Impressionismo
Como já foi dito no início desta matéria,
o Japonismo representou uma verdadeira revolução
no mundo da arte. A Europa e os EUA, até então
mergulhados na Revolução Industrial, encontraram
na inexplorada arte japonesa um novo impulso para suas criações
artísticas. Os ocidentais passam a encarar o mundo
tal qual como ele é, aspecto que foi descoberto nas
estampas ukiyo-e. As grandes experiências impressionistas
focam a natureza, com uma pintura pouco solene, com pessoas
remando, tomando chá. Pinturas que demonstram o cotidiano,
uma vida desprovida de formalidade, uma das características
das gravuras em ukiyo-e, relatou Dantas em palestra.
Monica
também observa que a natureza foi fundamental para
o surgimento de um novo movimento artístico. O
Japonismo motivou o Impressionismo a desprezar a pintura
em estúdio dos grandes salões e o fez procurar
diretamente na natureza os motivos de suas obras,
afirma. A contribução direta ou indireta
do Japonismo às artes ocidentais foi fundamental
e inexorável. Artistas sensíveis não
poderiam deixar de observar o que a arte japonesa trazia
de novidade e de inovação. Acredito que o
conhecimento da estética japonesa foi essencial para
o surgimento do modernismo, finaliza Mara Rúbia
Arakaki.
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The Red Kimono representa a
admiração de Breitner pelo traje oriental
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Madame
Monet in a Kimono:
beleza e sofisticação,
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O fascínio pelo quimono
E
quem diria que o quimono, um dos ícones máximos
da cultura e da tradição japonesas, tornaria-se
um elemento de admiração e, em alguns casos,
até de adoração por parte dos europeus?
Bem, de fato isso aconteceu e o grande difusor do famoso
traje do arquipélago na Europa foi, mais uma vez,
o ukiyo-e. Postura e gestos são o centro dos
teatros Kabuki e Nô. Seu repertório de movimentos
também conduz os trabalhos dos artistas de ukiyo-e,
que fizeram um grande número de pinturas de atores,
escreve Siegfried Wichmann em seu livro Japonisme
The Japanese Influence on Western Art Since 1858, inédito
em português.
Nesse contexto, o quimono assumiu, na Europa, o status de
símbolo de arte nipônica também devido
à sua sofisticação, ao design diferenciado
e à originalidade. A prova da admiração
pública dos gênios ocidentais pela vestimenta
está em quadros como The Red Kimono (1893), de Georg
Hendrik Breitner, e Madame Monet in a Kimono (1876), pintado
por Claude Monet. Na falta de mulheres japonesas para ostentar
o traje, esses talentosos artistas contentavam-se em usar
como modelos as belas européias, o que resultou em
uma mistura de idéias que marcou o conceito estético
do Japonismo no Ocidente.
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