(Por
Cláudio Seto*)
Nos
tempos antigos, em algumas regiões do Japão,
o povo acreditava na existência de um ser sobrenatural
chamado Jiki Niki. Esta é uma das lendas sobre
esse ser.
Certa
ocasião, quando Muso Soseki (127-1351), monge zen-budista
criador de jardins, fazia peregrinação na
província de Mino, ele se perdeu atravessando uma
região montanhosa. Caminhou sem rumo durante algumas
horas na floresta, até que avistou, no topo de
uma colina, um anjtsu (minúsculo santuário
construído para monges eremitas).
O
santuário estava em ruínas e, nele, habitava
um velho monge. Muso contou que estava perdido e pediu
que o deixasse passar a noite naquele local. Mas o ancião
foi muito mal-educado e negou-se terminantemente a hospedagem.
Porém, ele indicou uma aldeia que ficava no vale
próximo, dizendo que ali ele poderia conseguir
comida e um lugar para repousar.
Ao
chegar no povoado, o monge foi recebido com muita amabilidade
na casa do chefe da aldeia. Serviram-lhe boa alimentação
e ofereceram-lhe um quarto para ele descansar. Muso percebeu
que, na sala principal, havia cerca de 40 pessoas, mas,
cansado como estava, foi dormir sem conversar com o pessoal.
Pouco
antes da meia-noite, Muso foi despertado por vozes de
choros e lamentações. Um rapaz segurando
uma lanterna abriu a parede corrediça e saudou
respeitosamente o monge.
Desculpe-me incomodá-lo a esta hora. Sou o filho
mais velho desta casa. No começo da noite, quanto
o senhor chegou, meu pai havia falecido há poucas
horas. Vendo seu aspecto cansado, resolvemos contar o
fato assim que o senhor recuperasse as energias. O pessoal
que o senhor viu na sala são os moradores desta
aldeia que velavam o corpo de meu pai. Agora, eles estão
todos indo para outra aldeia. É costume nosso que
ninguém permaneça na aldeia na madrugada
depois da ocorrência de uma morte. Fazemos rezas
e oferendas conforme o costume do budismo japonês
e, então, partimos, deixando o cadáver sozinho,
pois coisas estranhas acontecem na casa onde o cadáver
foi deixado.
Como assim? Não estou entendendo.
Senhor monge, venha conosco, que lhe conseguiremos uma
hospedagem na aldeia vizinha. Talvez, por ser monge, o
senhor não tenha medo de demônios e espíritos
malignos. Se não tem receio de ficar sozinho com
o cadáver de meu pai, nós agradecemos. Porém,
devo dizer que ninguém, até hoje, se atreveu
a permanecer na casa onde existe um defunto.
Eu gostaria de ficar e fazer um culto para que o espírito
de seu pai consiga atravessar o Rio das Almas Perdidas
sem qualquer tipo de constrangimento. Não sei que
tipo de perigo estou correndo ficando para velar seu pai
até o amanhecer, porém posso dizer que não
temo os seres demoníacos (oni), nem os espíritos
malignos.
Agradecendo ao monge Muso, as pessoas da casa e os outros
aldeões foram para a aldeia vizinha.
Sozinho,
Muso realizou a cerimônia fúnebre e fez meditação,
ficando horas no mais absoluto silêncio. Não
havia nenhum tipo de som na aldeia deserta. Até
os cachorros haviam acompanhado seus donos. No auge da
meditação, quando reinava a mais profunda
quietude, um ser sobrenatural e demoníaco adentrou
a sala e pulou sobre o cadáver.
Muso
tentou uma reação, porém estava completamente
paralisado por uma estranha energia. Não conseguia
se mover nem falar. Apenas seus olhos arregalados assistiam,
horrorizados, àquele macabro ritual. O estranho
ser devorava o cadáver tão avidamente como
um gato devora um rato. Começando pela cabeça,
foi comendo tudo: cabelos, ossos e até mesmo as
vestes do defunto. Assim de devorou completamente o cadáver,
partiu para devorar as oferendas e consumiu tudo. Na seqüência,
desapareceu tão misteriosamente como tinha chegado.
Quando os aldeões voltaram, ficaram felizes ao
ver Muso com vida. O monge, ainda impressionado com o
que tinha visto, relatou detalhadamente o acontecido.
E os aldeões não demonstraram nenhum espanto
com a narrativa.
Foi exatamente como contaram os antigos moradores desta
aldeia disseram.
Então, o monge Muso perguntou:
E o velho monge da colina não faz cerimônias
fúnebres para vocês?
Não existe nenhum monge na colina.
Eu o encontrei em seu ermitério. Ele se
recusou a me dar abrigo, mas indicou essa aldeia para
mim.
Os ouvintes se olharam espantados e, após um momento
do silêncio, o novo chefe da casa disse:
Senhor monge, sinto dizer que não existe
nenhum santuário, nem monge eremita na colina.
Acho que o senhor estava cansado e algum texugo o fez
ter visões ilusórias.
Muso
Soseki concordou com ele e obteve detalhadas informações
sobre o caminho que deveria seguir, para não se
perder novamente. Mas, deixando a aldeia, foi em direção
à colina, procurar pelo santuário, pois
tudo parecia muito real para ser um truque ilusório
de raposa ou texugo.
Pouco depois, encontrou o santuário e o velho monge
eremita, que se curvou humildemente, dizendo estar envergonhado.
Tratei-o mal ontem. Estou muitíssimo envergonhado,
perdoe-me.
Ora, não há porque sentir vergonha por ter-me
negado abrigo. O senhor me indicou a aldeia onde fui muito
bem tratado.
Não estou com vergonha por ter-lhe negado
abrigo, mas sim porque você me viu em minha forma
real. Devorei o cadáver e as oferendas diante de
seus olhos. Eu sou um Jiki Niki, um devorador de cadáveres.
Antigamente, eu era o único monge desta região.
Assim, eu fazia as cerimônias fúnebres para
o pessoal da localidade. Às vezes, atendia povos
de aldeias distantes. Mas eu fazia os ofícios apenas
visando à recompensa financeira. Gostava de comer
alimentos caros e vestir roupas de luxo. Por causa das
minhas ações egoístas, quando morri,
renasci imediatamente na forma de um Jiki Niki.
Desde então, sou obrigado a me alimentar com defuntos
humanos, como você viu ontem à noite. Livre-me
desse sofrimento executando um culto Segaki (exorcismo
de Gaki, o espírito faminto). Ajude-me, por favor,
a me livrar desta horrível existência.
Assim
que o velho monge expressou sua petição,
desapareceu, como por encanto, juntamente com o santuário.
Então, Muso se viu ajoelhado na relva, ao lado
de um antigo túmulo antigo e entendeu que aquele
era o túmulo do velho monge eremita.
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